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O novo procedimento protetivo de dissolução das uniões conjugais

Por Venceslau Tavares Costa Filho e Caio Morau
Publicado em: 29/10/2019
No início de 2019, o Deputado Federal Luiz Lima (PSL/RJ) apresentou o Projeto de Lei 510, que pretendia permitir o divórcio ou rompimento da união estável, a pedido da ofendida, nos casos de violência doméstica contra a mulher.

A proposta foi originalmente apresentada de modo bastante enxuto. Através de um novo dispositivo a ser introduzido à Lei Maria da Penha, o art. 19-A, conferia-se à mulher vítima de violência, para além das medidas de urgência já previstas, a possibilidade de requerer ao juiz a dissolução da união conjugal.

O texto foi amplamente transformado e aprimorado em ambas as Casas do Congresso Nacional. Na Câmara, sob relatoria da Deputada Erika Kokay (PT/DF), foram acrescidas as disposições, de que se tratará detidamente adiante, a respeito da necessidade de se informar a ofendida da possibilidade de encaminhamento à assistência judiciária para eventual ajuizamento da ação de divórcio, da faculdade de sua propositura no juizado de violência doméstica contra a mulher e da preferência na tramitação.

No Senado Federal, o projeto ganhou seus principais contornos em virtude da apresentação de um substitutivo proposto pelo Senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE), amparado em parecer de lavra de um dos subscritores do presente artigo, igualmente firmado pela Professora Regina Beatriz Tavares da Silva, Presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões. O substitutivo foi responsável por:

a) incorporar a separação [1] e também a anulação do casamento no rol de possibilidades de que disporá a mulher vítima de violência doméstica;

b) apresentar a opção de ajuizamento tanto no juizado especial de violência doméstica e familiar contra a mulher como no juízo da vara de família;

c) modificar o Código de Processo Civil para acrescentar novo foro para o ajuizamento das ações de dissolução de união conjugal;

d) prever a intervenção obrigatória do Ministério Público nas ações de família em que figure vítima de violência doméstica e familiar.

Com a aprovação do substitutivo pela Câmara, o texto foi enviado para sanção presidencial no dia 10 de outubro de 2019. Tais regras integram o novo procedimento protetivo de dissolução das uniões conjugais, estabelecendo especialização procedimental em relação às ações de direito de família que visam a promover a dissolução do casamento ou da união estável.

A especialização do procedimento dá-se em virtude das peculiaridades de algumas espécies de pretensão de direito material, aptas a justificar, nos limites fixados pelo legislador, as orientações específicas à dispensa de tratamento procedimental diferenciado. Neste sentido, a situação de hipossuficiência da mulher vítima de violência doméstica justifica o encaminhamento dela à “assistência judiciária, quando for o caso, inclusive para eventual ajuizamento da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação do casamento ou de dissolução de união estável perante o juízo competente” (PL 510/2019, art. 9º, § 2º, III).

A ruptura de fato decorrente da violência doméstica pode, eventualmente, privar a mulher de recursos financeiros necessários ao custeio de uma ação judicial de divórcio ou separação judicial, que demanda o pagamento de custas judiciais e honorários advocatícios.

Como é cediço, é suficiente a alegação de insuficiência de recursos na petição inicial, presumindo-se verdadeira a alegação de hipossuficiência em favor de pessoa natural na sistemática do Código de Processo Civil vigente  (art. 99, § 3º). Ademais, caberá à autoridade policial informar a mulher ofendida de tal direito, nos termos do inciso V do art. 11 do PL 510/2019: “informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis, inclusive os de assistência judiciária para o eventual ajuizamento perante o juízo competente da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável”.

Em razão da vulnerabilidade da mulher vítima de violência doméstica e familiar, a ação de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento e dissolução da união estável deverá ser proposta no juízo do domicílio da vítima, em virtude da inserção da alínea “d’ entre as hipóteses do inciso I do art. 53 do Código de Processo Civil: “É competente o foro: I - para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável: d) de domicílio da vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha)”.
 
Sabe-se que em razão da consagração da igualdade de deveres entre homem e mulher no exercício dos deveres conjugais, o legislador optou por eliminar o antigo “privilégio” de foro da mulher nas ações de divórcio, separação e anulação do casamento.

A nova regra, contudo, é perfeitamente justificável em razão da vulnerabilidade da mulher atingida pela violência doméstica e familiar. Trata-se de medida semelhante à prevista em relação ao alimentando, que também poderá propor ação de alimentos no foro de seu domicílio ou residência por ser reputado vulnerável, conforme prescreve o inciso II do art. 53 do Código de Processo Civil. 

É também a vulnerabilidade em razão da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher que justifica a intervenção obrigatória do Ministério Público nas ações de família em que figure como parte a ofendida, conforme parágrafo único acrescido ao art. 698 do Código de Processo Civil: “Parágrafo único. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas ações de família em que figure como parte vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha)”.

Some-se ainda o fato de que a vulnerabilidade da vítima de violência doméstica também justificará a prioridade de tramitação, em qualquer juízo ou tribunal, dos procedimentos judiciais “em que figure como parte a vítima de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha)”, como passará a constar da redação do inciso III acrescido ao art. 1.048 do Código de Processo Civil em virtude do PL 510/2019. Por fim, mais importante do que a modificação do texto da lei deve ser a atitude do magistrado em relação à mulher vítima de violência no “julgar com perspectiva de gênero”.

Exercer a atividade judicante nesses termos significa dizer que os magistrados não podem decidir tais questões como tradicionalmente procedem quando estão diante de litígios entre dois homens ou entre duas empresas. Assim, se ao julgar uma situação específica de violência sexual contra uma mulher, que a suporta há pelo menos seis anos, um determinado Tribunal considera que o fato de não ter denunciado imediatamente tais violações significa que consentiu com elas, abstraindo as especiais características da vítima de violência, tem-se como resultado um julgamento injusto que evidencia a insuficiência das leis e a falta de uma adequada formação sobre questões de gênero.

A decisão em questão não será injusta apenas para as pessoas envolvidas no caso concreto, visto que termina por contribuir ao aumento da violência contra as mulheres.

Em outras palavras, esse cenário de ineficiência do Poder Judiciário favorece a violência doméstica e familiar contra a mulher ao passar ao público a mensagem de que não existem reais evidências da vontade e da ação do Estado para prevenir, punir e reprimir tais atos em nome da sociedade civil.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM)
 

[1] Recorde-se, a esse respeito, decisão da Quarta Turma do STJ em 2017, em processo correndo em sigilo, no sentido da subsistência da separação no ordenamento jurídico brasileiro. 

Aguarda-se a manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria no seio do Recurso Extraordinário 1167478, cuja repercussão geral foi reconhecida em votação unânime. 

*Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade de Pernambuco (UPE) e doutor em Direito pela UFPE.

*Caio Morau é doutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Escola Superior de Direito e assessor jurídico no Senado Federal. Organiza a obra História e Futuro do Direito Brasileiro: estudos em homenagem a Ignacio Maria Poveda Velasco (LiberArs, 2019).
Fonte: ConJur
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