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Consultor Jurídico – Artigo - Notas sobre as recentes alterações na Lei de Incorporações Imobiliárias

Publicado em: 10/01/2022
No último dia 27, foi editada a Medida Provisória 1.085, que cria o Sistema Eletrônico de Registros Públicos (Serp), mas também traz importantes alterações em outras normas pertinentes às incorporações imobiliárias, que não estão sendo ainda debatidas. No presente texto, abordamos tais alterações, apontando as mudanças ocorridas e fazendo uma breve análise sobre as repercussões na atividade de venda de imóveis a construir ou em construção.
 
A atividade de incorporação imobiliária é regida pela Lei Federal 4.591/64, que estabelece a obrigatoriedade de prévio registro da incorporação na matrícula do imóvel antes do lançamento do empreendimento, o procedimento e documentos necessários, bem como as regras contratuais na relação entre incorporador e adquirentes, normas estas que também são regidas pelo Código de Defesa do Consumidor.
 
A recente Medida Provisória 1.085 traz alterações relevantes na Lei 4.591/64, que visam, de um lado, a simplificar custos e burocracia; de outro, a dar maior transparência aos condôminos e também facilitar os procedimentos de retomada das obras ou liquidação do patrimônio, no caso de a incorporadora não conseguir concluir o empreendimento. Entretanto, nem todas as medidas são benéficas e podem trazer consequências indesejáveis a todos os envolvidos, conforme abaixo exposto.
 
Extinção Automática do patrimônio de afetação
Foram incluídos novos parágrafos no artigo 31-E da Lei 4.591/64, que trata da extinção do patrimônio de afetação. A alteração insere um novo conceito que consiste na extinção parcial do patrimônio de afetação, por unidades e não do empreendimento como um todo. O parágrafo primeiro trata da extinção automática do patrimônio de afetação para cada unidade autônoma alienada a terceiros, quando da averbação da construção, registro do contrato e averbação da quitação do financiamento bancário (desligamento da unidade), quando for o caso.
 
Já o parágrafo segundo prevê que, "quando da extinção integral das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento e após a averbação da construção, a afetação das unidades não negociadas será cancelada mediante averbação, sem conteúdo financeiro, do respectivo termo de quitação na matrícula matriz do empreendimento ou nas respectivas matrículas das unidades imobiliárias eventualmente abertas". Nesse caso, a extinção se refere às unidades que se mantiveram no estoque da incorporadora.
 
Assim, em um mesmo empreendimento já concluído, poderá haver unidades não submetidas ao patrimônio de afetação e outras ainda submetidas a tal regime, enquanto não liberadas do plano empresário (financiamento da obra).
 
Entretanto, há uma questão relevante do ponto de vista tributário. O cancelamento da afetação das unidades não negociadas, acima previsto, poderia levar a uma interpretação de que sua futura venda não poderia mais ser tributada pelo Regime Especial Tributário (RET). Entretanto, a nosso ver tal interpretação seria equivocada, pois permanece em vigor o artigo 11-A da Lei nº 10.931, que expressamente permite a aplicação do RET até o "recebimento integral do valor das vendas de todas as unidades que compõem o memorial de incorporação (...), independentemente da data da sua comercialização". Veja-se que a adoção desse regime já era expressamente admitida por lei e pela Secretaria da Receita Federal, mesmo no caso de venda de unidades após o término das obras.
 
As recentes alterações no artigo em questão estabelecem, ainda, que o patrimônio de afetação também poderá ser cancelado por averbação da ata da assembleia de condôminos que tenha deliberado por sua liquidação, nas hipóteses legais que permitem a destituição da incorporadora.
 
Prazo de carência: necessidade de comprovação da devolução dos valores aos adquirente
A legislação sempre permitiu que a incorporadora suspendesse a realização do empreendimento caso um número mínimo de vendas de unidades autônomas estabelecido pelo incorporador não fosse atingido em até 180 dias contados do registro do memorial de incorporação (é o chamado prazo de carência da incorporação). Nesse caso, a lei também prevê que sejam devolvidos aos adquirentes todos os valores por eles pagos.
 
O texto da medida provisória em questão inova ao estabelecer que se a incorporação estiver subordinada ao patrimônio de afetação, para seu cancelamento em decorrência de não ser atingido o limite mínimo de vendas, será necessário apresentar ao cartório os recibos de recebimento da devolução aos adquirentes (parágrafo 3º do artigo 31-E).
 
Trata-se de medida que pode trazer dificuldades de ordem prática, especialmente porque o cartório não tem controle sobre as unidades vendidas, cujos contratos em geral não são registrados. Assim, é possível que alguns cartórios exijam uma declaração da incorporadora sobre quais unidades foram vendidas, enquanto outros podem ser mais formalistas, requerendo o prévio registro do contrato. Essa última medida seria totalmente descabida, pois, além de não ser exigida pela lei, não faria sentido registrar uma promessa de venda e compra para na sequência promover seu cancelamento.
 
Por fim, pode haver ainda dificuldades para comprovar a devolução de valores a adquirentes que não tenham sido localizados, se recusem a firmar o recibo, tenham falecido ou mesmo estejam em litígio entre si.
 
Registro da incorporação
Fica dispensada a apresentação do atestado de idoneidade financeira para registro da incorporação, antes exigido nas alíneas do artigo 32 da Lei nº 4.591/64. Trata-se de medida salutar, já que dotada de pouco efeito prático. Em geral, as incorporadoras realizam a incorporação por meio de sociedade de propósito específico (SPE), de forma que muitas vezes a incorporadora sequer tem conta aberta, quando do registro da incorporação. Por outro lado, o banco emitente de tal declaração não poderia ser responsabilizado por eventual prática financeira indevida da empresa.
 
Nesse cenário de desburocratização dos documentos necessários ao registro, perdeu-se a oportunidade de abolir também a exigência do "histórico dos títulos de propriedade do imóvel nos últimos vinte anos", que é mero expediente burocrático, já que a própria certidão vintenária também é exigida.
 
O prazo para o cartório apresentar eventuais exigências passa de 15 dias corridos para dez dias úteis. Desde que cumpridas as exigências, o registro de imóveis terá mais dez dias úteis para proceder ao registro.
 
Ficou expresso também na lei, nos termos do novo parágrafo 14 do mesmo artigo 32, que poderão ser apresentadas cópias dos andamentos digitais dos processos, em substituição às certidões de objeto e pé. Esse expediente já vinha sendo aceito por alguns cartórios, mas é importante que tenha sido positivado, para que sua adoção se dê de maneira uniforme. Também contribui para permitir que os serventuários da Justiça foquem em atividades mais produtivas, uma vez que não mais precisarão emitir certidões sobre andamento de processos (ao menos para essa finalidade). 
Uma novidade interessante é o parágrafo 15, cuja redação determinou que o registro da incorporação e a futura instituição de condomínio, quando pronta a obra, constituam ato registral único. Isso traz economia considerável nas despesas do empreendimento, já que, com isso, não poderão ser cobradas custas dobradas para a instituição condominial.
 
Concretização da incorporação
Desde 1964, não havia uma clareza, ou consenso, no que viria a ser a "concretização da incorporação" prevista na lei. Agora, o novo texto deixa isso expresso ao estabelecer que a incorporação imobiliária se concretiza com venda ou oneração de uma unidade, ou obtenção de financiamento para construção, ou início das obras.
De acordo com a alteração legislativa, caso um desses requisitos não seja comprovado no prazo de 180 dias, após registro do empreendimento, os documentos que tenham se vencido (basicamente, as certidões forenses, tributárias e os quadros III e IV da NBr 12.721) precisarão ser renovados, como requisito para venda de unidades.
 
Comunicações aos adquirentes e comissão de representantes
A obrigatoriedade de comunicação aos integrantes da comissão de representantes, a cada três meses, do relatório do estado da obra e sua correspondência com o prazo pactuado já estava prevista em lei. A medida provisória inova ao determinar que tal informação seja encaminhada a todos os adquirentes, o que pode ser considerado uma importante medida de transparência.
 
Entretanto, a obrigação agora estabelecida, de entregar a todos os adquirentes relação com nome, endereço residencial e eletrônico de todos os compradores é uma inovação totalmente desnecessária e equivocada. Desnecessária porque a lei já estabelece uma comissão de representantes, eleita pelos próprios condôminos em assembleia, para representarem seus interesses e receberem essas informações (e respondendo por eventual uso indevido). Equivocada porque muitos adquirentes não desejam que suas informações pessoais, inclusive endereço residencial, circulem entre dezenas, senão centenas de pessoas desconhecidas.
Essa determinação legal, aliás, é contraditória com os objetivos contidos na Lei Geral de Proteção de Dados, disseminando informações sensíveis, de forma desnecessária, a um grupo aberto, não comprometido com a segurança dos dados. Convém que o Congresso, na análise da medida provisória, retire do texto essa disposição incompatível com nosso ordenamento.
 
A nova medida provisória também traz a obrigatoriedade de que a comissão de representantes seja constituída em até seis meses do registro da incorporação. A novidade é justamente o estabelecimento de um prazo máximo, antes inexistente, o que é mesmo adequado.
 
Destituição extrajudicial da incorporadora
No caso de destituição da incorporadora, em razão de insolvência ou paralisação da obra (se descumprida notificação judicial para dar andamento à construção, na forma como antes previsto), os condôminos poderão requerer ao oficial de registro de imóveis que promova nova notificação à incorporadora, para que esta então transfira a posse do empreendimento à comissão de representantes e a ela entregue toda documentação pertinente.
 
Também deverá a incorporadora efetuar o pagamento de suas cotas de construção pertinente às unidades ainda não vendidas. Embora esta seja uma obrigação inerente a quem promove o empreendimento, o que se observa na prática é que, se tais obrigações estivessem sendo cumpridas, provavelmente a obra não teria sido paralisada. De qualquer forma, as unidades não vendidas responderão por esse débito, o que fica ainda mais expresso pelo texto da nova norma, estabelecendo sua indisponibilidade e impossibilidade de constrição por dívidas que não sejam do próprio empreendimento.
 
Há também previsão expressa de inscrição do registro do condomínio de construção no CNPJ, mediante registro da ata de destituição da incorporadora, o que supre uma dificuldade muitas vezes enfrentada pela comissão de representantes. Com tais normas, a lei visa a melhor regrar e facilitar o processo de retomada das obras, ou venda do empreendimento, pelos condôminos prejudicados.
 
Como se depreende, as inovações nas incorporações imobiliárias são relevantes, têm impactos no processo de registro e na relação com os adquirentes e não podem passar despercebidas. Embora a maior parte das novas medidas seja salutar, há alguns pontos, como acima tratado, que merecem melhor análise e aperfeiçoamento.
 
Rodrigo Cury Bicalho é advogado, membro do Conselho Jurídico do Secovi/SP e do Sinduscon/SP, membro do Conselho de Administração do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim) e professor do Curso MBA Tecnologia e Gestão da Produção de Edifícios da POLI/USP.

Nathália Lima Feitosa Lopes é advogada e mestranda em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP).

 
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