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Como desatar o nó da desburocratização

Publicado em: 22/04/2009
 
No último domingo, a Revista Consultor Jurídico publicou artigo da presidenta Patricia Ferraz, que comentou medida do governo federal dispensando o reconhecimento de firma em qualquer documento produzido no Brasil, desde que assinado na frente de servidor público.

Burocracia é necessária para garantir segurança
Por Patricia André de Camargo Ferraz

Em artigo publicado neste espaço, falamos do desafio que os cartórios aceitaram para enfrentar a burocracia estatal e oferecer mais celeridade, sem pôr em risco a segurança (Desafio dos cartórios é reduzir burocracia e oferecer celeridade, 7/8/2008). Em face das constantes tentativas de fraudes, a dificuldade está em desburocratizar sem comprometer a segurança jurídica que alguns procedimentos buscam garantir.

O Ministério do Planejamento submeteu a consulta pública um pacote contra a burocracia para ser posteriormente encaminhado ao Congresso. Considerada um avanço pelo Conselho Nacional de Justiça, a iniciativa merece elogios de todos nós. No entanto, não podemos esquecer a recomendação de alguns membros do CNJ, em especial a do conselheiro Marcelo Nobre, de que “é necessário ter cautela na implementação das propostas, de maneira a garantir a autenticidade dos documentos”.

Se quisermos desatar os nós da burocracia — como propõe o louvável programa de governo do estado de São Paulo — primeiro temos de entender o grande nó da desburocratização: distinguir as rotinas administrativas que garantem eficiência, agilidade, comodidade e segurança jurídica daquelas que resultam em emperramento dos processos e morosidade.

A sociedade não quer apenas a desburocratização, mas exige também segurança em relação à legitimidade dos documentos, como alerta o conselheiro Marcelo Nobre, razão por que é fundamental que se encontre o ponto de equilíbrio entre os dois pesos dessa balança.

O pacote do governo federal visa simplificar o atendimento ao cidadão e melhorar o desempenho do serviço público. Uma das medidas dispensa o reconhecimento de firma em qualquer documento produzido no Brasil, desde que assinado na frente do servidor público. Não obstante a meta seja das mais meritórias, será alcançada por medidas como essa?

Como será que o reconhecimento de firma chegou aos dias de hoje apesar de ser o ícone preferencial das campanhas para acabar com a burocracia? Alguns atribuem sua sobrevida à “cultura burocrática do brasileiro”, que por esse raciocínio deve adorar perder tempo com todo tipo de trâmites complicados, onerosos e desnecessários. Outros falam em resistência dos cartórios. Na verdade, os tabelionatos de notas apenas fazem o reconhecimento de firma solicitado por vários órgãos públicos, empresas, bancos e escolas.

Sem conhecer muito bem para que servem os procedimentos que vamos eliminar, corremos o risco de expor a segurança jurídica negocial e multiplicar exponencialmente os efeitos perversos que pretendíamos extirpar. Por exemplo, o ato de reconhecimento de firma não foi simplesmente “dispensado e ponto final”. Ele foi transferido para o servidor público — o que comprova sua necessidade — e o cidadão terá de comparecer pessoalmente no órgão governamental em questão para ser devidamente identificado. No caso de São Paulo, supõe-se que em vez de se reconhecer firma no cartório mais próximo, será muito mais vantajoso ir pessoalmente à prefeitura, Detran, secretarias estaduais, etc. Se o cidadão, por óbvia opção de conforto, preferir usar um dentre as centenas de cartórios disponíveis na cidade, ele engrossará, irremediavelmente, a estatística dos dinossauros fincados na cultura burocrática do país.

É difícil acreditar que dita cultura burocrática resista a facilidades de fato postas ao alcance do cidadão. Só para se ter uma idéia, somente no primeiro ano de edição da Lei 11.441/07, que possibilita a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual em cartório — com grau de burocracia próximo do zero, diga-se —, foram contabilizados mais de 54 mil desses atos realizados nos tabelionatos paulistas. Estranhamente, nesse caso não prevaleceu a cultura burocrática brasileira de realizar todos esses atos no Judiciário.

Burocracia versus segurança

Não é por acaso que a profissão de tabelião de notas e o ato de reconhecimento pessoal das pessoas que assinam documentos existem praticamente em todos os países, até na China. Aliás, o Brasil adotou o reconhecimento de firmas porque, diferentemente da maioria dos países, aceita como válidos documentos particulares. Na Espanha, por exemplo, nenhum documento particular tem acesso ao Registro de Imóveis, mas tão somente aqueles formalizados em escrituras públicas, de modo que o notário sempre verifica a identidade daqueles que assinam os instrumentos que lavram, garantindo a autenticidade e a segurança dos negócios. Se assim não é, ou seja, se não se impõe a obrigatoriedade da adoção da escritura pública, o reconhecimento de firma assume a posição de facilitador dos negócios e garantidor da autenticidade e segurança dos contratos.

É claro que todos nós gostaríamos de viver num mundo perfeito, em que não houvesse necessidade de reconhecimento de firma, autenticação de documentos, registros, chave, alarme ou cadeado. Se de repente nosso mundo se transformasse nesse ideal não seria preciso uma medida do governo para acabar com o reconhecimento de firma. Simplesmente ele deixaria de ser solicitado por empresas, bancos, credores em geral e até pelos próprios órgãos públicos, que, a partir de agora e na falta do reconhecimento de firma em cartório, terão de identificar as pessoas.

As fraudes em documentos de toda a natureza — contratos de venda e compra, fiança, para constituição de empresas, etc. — são mais comuns do que se pensa. Por que será que os bancos pedem reconhecimento de firma nos contratos particulares de compra e venda de imóveis e nos documentos de transferência de veículos automotores? E por que as imobiliárias insistem em solicitar firma reconhecida nos contratos de locação? Porque são muitos os casos em que a pessoa pede para um terceiro assinar ou falsifica a própria assinatura para mais tarde poder alegar que não assinou o documento. O que faz o locador para se precaver contra um fiador “laranja”? Será que esses credores solicitam reconhecimento de firma e autenticação de documentos àqueles para quem emprestam, ou com quem negociam, apenas porque se apegaram a uma burocracia desnecessária?

Na verdade, mediante procedimentos como o reconhecimento de firma, os cartórios previnem inúmeros litígios que acabariam na Justiça, como as fraudes negociais formalizadas através de contratos celebrados sem medidas de segurança. É notável o número de empresas constituídas irregularmente, sem que os supostos “sócios” saibam que seus nomes constam em tais documentos. E é simples imaginar os gastos para os particulares lesados e para o poder público, com ações judiciais que visem à reparação dos danos civis, penais e trabalhistas originados a partir da falta de adoção de medidas preventivas de fraudes.

Em futuro não muito distante, reconhecer assinaturas de próprio punho — em cartório ou na presença de um servidor público — parecerá um ato jurássico, mas não por vontade do governo ou de quem quer que seja. É que a disseminação do certificado digital poderá substituir a caneta na efetivação de negócios à distância para obter ganhos efetivos em rapidez e segurança. Os cartórios estão preparados para as novas funções que vêm por aí e muitos já trabalham com assinatura digital, agregando à segurança proporcionada pela tecnologia, a fé pública do notário, ou tabelião, e do registrador. Esse sim será um grande e verdadeiro salto em eficiência, agilidade e segurança jurídica para o cumprimento da inevitável burocracia existente em todas as sociedades organizadas e modernas do mundo.

Patricia André de Camargo Ferraz é registradora imobiliária em Diadema (SP), presidente da Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (ANOREG/SP) e diretora de regularização fundiária e urbanismo do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (Irib). Foi promotora de Justiça em São Paulo de 1988 a 2003.

(Consultor Jurídico, 19 de abril de 2009)

 

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