“Os Códigos não são monumentos megalíticos, talhados na rocha, para se perpetuarem com a mesma feição dos primeiros momentos, eretos, imóveis, inerradicáveis, rujam em torno, muito embora, tempestades esbarrondem-se Impérios, soçobrem civilizações. O próprio Justiniano não pretendia perpetuidade para sua obra atributo que diz ele só a perfeição divina cabe alcançar” Clóvis Beviláqua, ‘Em defesa do Projeto de Código Civil brasileiro’, 1906.
Sentado na biblioteca de Zeno Veloso, após a passagem da trasladação de Nossa Senhora de Nazaré, resolvi iniciar essas linhas sobre a tão maltratada regra da concorrência sucessória. A questão passa pela leitura e interpretação do inciso I do art. 1.829 que assim dispõe: Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; Após ganhar livros ímpares do amigo Zeno, a inspiração está em seu auge. Depois de idas e vindas, avanços e retrocessos[1], o STJ em maio de 2015, por meio da Segunda Seção, consolidou o entendimento sobre o tema. A 2ª Seção, por maioria de votos[2], concluiu que: a) No regime de separação convencional de bens, aquele que surge do pacto antenupcial, o cônjuge, por não ser meeiro, concorre com os descendentes.[3] b) No regime de comunhão parcial de bens, o cônjuge não concorre com os descendentes quanto aos bens comuns (em que já é meeiro), mas concorre quanto aos bens particulares[4]. Em suma, o STJ segue a orientação do Código Civil pela qual a concorrência sucessória tem caráter assistencial. A ratio legis é que o viúvo ou viúva tenha bens após a morte do de cujus, garantindo assim sua sobrevivência. Deve-se frisar que a razão de ser da lei não é nova. Remonta o ano de 1962. A atual concorrência sucessória substitui o usufruto vidual[5] introduzido no sistema pelo Estatuto da Mulher Casada (Lei 4121/62). Na redação original, dispunha o artigo 1611 do Código Civil de 1916: “Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente, se ao tempo da morte do outro não estavam desquitados.” Em 1962, o artigo ganha o parágrafo primeiro: “1º O cônjuge viúvo se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filho dêste ou do casal, e à metade se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do de cujus” O usufruto em favor do viúvo ou viúva só teria cabimento se o regime de bens não fosse o da comunhão universal, pois nessa hipótese o cônjuge sobrevivente já teria a meação. Uma tabela demonstra a lógica e o acerto da interpretação que o STJ deu ao inciso I do artigo 1829: A partir dessa segura e adequada orientação surgem duas questões que a lei não resolve de maneira direta e que será necessária a verificação da teleologia da norma para suas respostas. 1. Se o cônjuge for casado pelo regime de comunhão universal e tiver bens particulares, haverá concorrência sucessória entre descendentes e cônjuge sobrevivente quanto a esses? O artigo 1668 do Código Civil admite a existência de bens particulares no regime de comunhão universal. Em que pese não ser usual, em termos práticos, o inciso I do dispositivo admite que haja bens doados ou legado por testamento com cláusula de incomunicabilidade, cujo efeito é excluir a meação sobre tal bem. Da mesma forma se o bem for doado ou legado por testamento com cláusula de inalienabilidade. A inalienabilidade acarreta incomunicabilidade (art. 1911 do CC e Súmula 49 do STF). Se o pai doar um imóvel à filha com cláusula de incomunicabilidade, o bem é particular apesar de o regime de bens da filha ser o da comunhão universal. Quando da morte da proprietária, terá o viúvo direito ao bem em concorrência com os descendentes da falecida? Pela redação do artigo 1829, I, o cônjuge não concorre com os descendentes se o regime de bens for da comunhão universal. Em interpretação literal, não ocorreria a concorrência. O bem pertenceria apenas aos filhos da falecida. Contudo, em interpretação teleológica, buscando-se a finalidade da norma, a partir da própria evolução histórica do tema, conclui-se que o cônjuge concorre com os descendentes quanto ao bem particular, pois quanto a este não há meação. Seguem-se, assim, os exatos termos da atual intepretação que o STJ dá ao dispositivo. 2. Se o cônjuge for casado pelo regime de separação convencional e tiver bens condomínio com o falecido, haverá concorrência sucessória entre descendentes e cônjuge sobrevivente quanto a esses? Imaginem ou casal que, por pacto antenupcial, adota o regime de separação total ou absoluta de bens (art. 1.687 e 1.688 do CC). Se a esposa adquirir um bem, este será particular e não haverá incidência da meação. Logo, quando da morte da esposa, o marido herdará em concorrência com os descendentes da falecida. Nesse regime não haverá bens comuns (leia-se meação) por força da vontade das partes externada em pacto antenupcial. Contudo, nada impede que os cônjuges resolvam adquirir bens em condomínio, ou seja, cada um contribui com uma parte do dinheiro. Na hipótese de morte, o cônjuge concorrerá com os descendentes quanto a 50% do bem que pertence ao falecido? Pelo texto do Código Civil a resposta seria positiva. Pelo regime de separação convencional haverá concorrência. Contudo, em interpretação teleológica, o cônjuge viúvo, apesar de não ser meeiro, tem 50% do bem por força do condomínio, logo não concorre com os descendentes quanto aos outros 50%. A ratio legis fica atendida: se o cônjuge já é proprietário de 50% do bem, não há que se falar em concorrência. Seguem-se, assim, novamente, os exatos termos da atual intepretação que o STJ dá ao dispositivo. É essa também a opinião de Zeno Veloso manifestada verbalmente eu sua aprazível biblioteca. As duas conclusões às quais chegamos seguem os exatos ensinamentos de Beviláqua: os Códigos não são feitos “para se perpetuarem com a mesma feição dos primeiros momentos, eretos, imóveis”. José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito . | ||
Fonte: Conjur | ||
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