Provimento nº 63 do CNJ desburocratiza procedimentos
A paternidade ou maternidade socioafetiva, em apertada síntese, constitui-se em decorrência da relação de afeto estabelecida entre pessoas que convivem e exercem os direitos e deveres inerentes à posição paterna ou materna e à posição de filho, mesmo sem manterem laço consanguíneo entre si. Como leciona MARIA BERENICE DIAS, “o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse de estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado” (Manual de Direito das Famílias, 3ª edição, São Paulo: RT, 2016, p. 59/60). Na concepção atual do Direito das Famílias, o afeto foi alçado à condição de princípio jurídico a ser tutelado pelo Estado. Neste contexto, “o princípio da afetividade, que é correlato ao princípio da solidariedade, deve reger as relações humanas e permear a aplicação das normas jurídicas de um modo geral. Nessas condições, o princípio da afetividade, conquanto não se ache inscrito expressamente na Constituição, desponta como um novo valor a ser preservado pela ordem constitucional, como forma de realização do próprio Estado” (SANTOS, Romualdo Baptista dos. A Tutela Jurídica da Afetividade, Curitiba: Juruá, p. 135). O artigo 1.593 do Código Civil, em consonância com o texto constitucional, estabelece que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, compreendendo-se aqui o parentesco oriundo de reprodução assistida ou de vínculo socioafetivo sem liame biológico ou de adoção. O vínculo de paternidade ou maternidade socioafetiva pode se consolidar nos mais diversos núcleos familiares que compõem a sociedade, posto que, nos exatos termos do artigo 226 da Carta Magna, a família é a base da sociedade e receberá proteção especial do Estado, sendo, assim, descabida qualquer discriminação entre elas. Mais comumente, a socioafetividade surge nas famílias compostas por pais divorciados, separados e/ou pais solteiros com filhos que passam a conviver com um novo parceiro. Com a convivência familiar diária, os filhos pré-concebidos e os novos parceiros podem estabelecer gradativamente uma relação de respeito e afeto, que poderá culminar na consolidação de uma nova relação de paternidade ou maternidade, oriunda da posse do estado de filiação. E, com isso, não necessariamente se extingue a relação parental consanguínea, prévia à relação socioafetiva. Pelo contrário, a relação consanguínea e a afetiva podem coexistir, sem comprometer a esfera de direitos e deveres dos pais biológicos e, mais importante, materializando a proteção integral ao interesse do menor, conforme o texto constitucional e o Estatuto da Criança e do Adolescente. A relação de filiação socioafetiva estabelece vínculo com direitos e deveres idênticos àqueles verificados na paternidade consanguínea. Com isso, o pai ou a mãe socioafetivos ficam sujeitos a exercer o poder familiar com o devido zelo e os filhos, por sua vez, têm tutelados os seus direitos à educação, criação e subsistência, bem como seus futuros direitos sucessórios. Por muito tempo houve resistência em se reconhecer este tipo de vínculo de filiação, ante a ausência de previsão legal expressa, o que, todavia, foi superado pela doutrina e jurisprudência, que, nos últimos anos, passaram a admitir amplamente a paternidade socioafetiva. Exemplo disso foi o julgamento paradigma do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 898.060/SC, no qual foi fixada a tese de que: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”. Ocorre que, ainda que voluntário o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, o pai ou mãe interessados em obter a chancela legal precisavam ingressar com uma ação judicial para este fim, na qual cabia a eles comprovar o liame familiar estabelecido com o filho a ser reconhecido, sob pena de indeferimento da pretensão. Isso, no entanto, acabava por criar entraves desnecessários ao reconhecimento do vínculo, desestimulando muitas pessoas a buscarem tal tutela estatal, em detrimento dos interesses do menor. Em paralelo, admitia-se o reconhecimento da paternidade biológica pela via extrajudicial mediante simples declaração, presumindo-se a boa-fé do declarante, o que acabava por estabelecer distinção indevida entre a paternidade biológica e a afetiva, em arrepio ao artigo 227 da Constituição, segundo o qual “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Por conta disso, algumas Corregedorias-Gerais de Justiça no país passaram a admitir o reconhecimento espontâneo do vínculo de paternidade ou maternidade socioafetiva em cartório, mediante a edição de provimentos específicos a respeito do tema. Em outros Estados, porém, tal possibilidade não era regulamentada, carecendo, assim, a questão de normatização e uniformização em âmbito nacional. Em São Paulo, por exemplo, não havia provimento regulando a questão e, por isso, muitos pedidos extrajudiciais de reconhecimento de paternidade ou maternidade foram levados à apreciação do Judiciário, tendo o Tribunal de Justiça, em mais de uma oportunidade, se manifestado pela possibilidade do reconhecimento do vínculo socioafetivo em cartório. A fim de dirimir a questão, em 14 de novembro de 2017, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento nº 63, instituindo modelos únicos de certidões de nascimento, casamento e óbito a serem utilizados em território nacional, tratando do registro dos filhos concebidos por reprodução assistida e dispondo sobre a possibilidade de reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva em cartório. No tocante a este último item, objeto da presente análise, o Provimento nº 63 assevera que a relação de parentesco pode ter outra origem que não a consanguínea e que o nosso ordenamento jurídico confere proteção integral aos filhos, vedando qualquer tipo de discriminação concernente à filiação e sua origem. Assim, uma vez possível o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade biológica perante o oficial de registro civil, é consequência lógica dos princípios constitucionais da igualdade jurídica e da filiação que se admita também o reconhecimento extrajudicial do vínculo de paternidade socioafetiva. O Provimento faz alusão ainda à ampla aceitação da filiação socioafetiva, fundada nos princípios da afetividade e dignidade da pessoa humana, ao julgamento paradigma do STF acima citado (RE nº 898.060/SC) e à conveniência de uniformizar em território nacional regras básicas para o registro da paternidade ou maternidade socioafetiva, inclusive no que tange aos aspectos sucessórios e patrimoniais, a fim de conferir segurança jurídica aos envolvidos, principalmente para os filhos menores. Em seu artigo 10, o Provimento nº 63 estabeleceu que o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade poderá ser feito diretamente perante um oficial de registro civil, mediante requerimento administrativo que independente de chancela judicial. Este reconhecimento é irrevogável (artigo 1.610 do Código Civil) e poderá ser desconstituído somente nas hipóteses excepcionais de vício de vontade, fraude ou simulação, o que, na prática, dificilmente ocorrerá, uma vez que a relação socioafetiva está fundada no afeto (situação de fato) estabelecido com o filho a ser reconhecido como tal, em relação ao qual dificilmente haverá vício de consentimento por parte do interessado. O Provimento veda qualquer restrição em relação ao estado civil do interessado, exigindo apenas que (i) o interessado tenha a idade mínima de 18 (dezoito) anos, (ii) haja diferença de, no mínimo, 16 (dezesseis) anos entre o interessado e o filho a ser reconhecido, e (iii) não haja vínculo de parentesco biológico na linha ascendente ou de irmãos entre o interessado e o filho a ser reconhecido, regras essas que coincidem com as do Estatuto da Criança e do Adolescente relativas à adoção. Embora não esteja expresso no texto normativo, não é demais frisar que os cartórios de registro civil não poderão impor restrições ao reconhecimento de paternidade ou maternidade socioafetiva requerido por pessoas integrantes de uniões homoafetivos ou estruturas familiares diversas, como as famílias anaparentais e as poliafetivas. No artigo 11 do Provimento, consta ainda que o pedido de reconhecimento do vínculo afetivo poderá ser processado perante qualquer cartório de registro civil do país, e não necessariamente perante o ofício onde se encontra registrado o assento de nascimento do filho a ser reconhecido, o que igualmente denota o esforço em facilitar o acesso e a tramitação do pedido. O pedido deverá ser instruído com os documentos de identificação das partes e, sendo o filho menor, deverá contar com a anuência de seus pais registrais. Na falta ou impossibilidade de manifestação válida deles, o caso deverá ser levado ao juiz competente, nos termos da legislação vigente. Outra importante regra é que, se o filho for maior de 12 (doze) anos, o reconhecimento do vínculo dependerá do seu consentimento, o que, todavia, poderá ser suprido judicialmente, caso demonstrada a existência da relação socioafetiva e que seu reconhecimento atende ao melhor interesse do menor. Quando o procedimento de paternidade ou maternidade envolver pessoa com deficiência (como requerente ou como filho a ser reconhecido), o Provimento determina sejam observadas as regras da tomada de decisão apoiada instituídas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, que conferiu a redação atual do artigo 1.783-A do Código Civil. Admite-se, ainda, a possibilidade de reconhecimento do vínculo socioafetivo por meio de testamento, observando-se os demais trâmites previstos no Provimento nº 63. O oficial registrador poderá, no entanto, recusar o pedido e encaminhá-lo ao juiz competente, quando suspeitar que há ilegalidade ou dúvida acerca da relação socioafetiva em questão. Deve-se aqui ponderar que o oficial somente poderá recorrer a tal expediente quando tiver fundada suspeita de ilicitude, justificando-a dentro dos limites de sua competência, uma vez que a boa-fé do requerente é presumida e, assim como ocorre no reconhecimento voluntário de paternidade biológica, não se exige para o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva a demonstração cabal do vínculo. Ademais, havendo ação judicial versando sobre o reconhecimento da filiação socioafetiva ou adoção do filho a ser reconhecido, não se pode recorrer à via extrajudicial. Neste sentido, deve o requerente declarar, quando do pedido de reconhecimento do vínculo, que desconhece a existência de disputa judicial acerca da filiação do filho a ser reconhecido, sob pena de incorrer em ilícito civil e penal. Outrossim, o Provimento aduz em seu artigo 14 que o reconhecimento do vínculo “somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento” (g.n.). Este dispositivo tem gerado interpretações conflitantes na doutrina, entendendo, todavia, este artigo que a redação em comento autoriza a inclusão de até dois pais e até duas mães no assento de nascimento do filho, justamente porque podem coexistir a paternidade biológica e a socioafetiva, como já decidido pelo STF no supramencionado RE 898.060. Por fim, o Provimento estabelece que o reconhecimento espontâneo do vínculo afetivo não impede a discussão judicial sobre a verdade biológica, posto se tratar de direito fundamental dos filhos buscar e ter acesso à sua identidade e vínculo consanguíneo com o pai ou mãe biológicos, a qualquer tempo. Trata-se, portanto, de importante invocação legislativa que, em consonância com o atual estágio evolutivo do Direito das Famílias, confere maior autonomia à esfera privada das pessoas, desburocratizando procedimentos, tutelando o interesse primordial dos menores ao reconhecimento da filiação socioafetiva e reafirmando o afeto como um princípio jurídico constitucional a ser tutelado pelo ordenamento jurídico. Ulisses Simões – advogado do L.O. Baptista Advogados | ||
Fonte: Jota | ||
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