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É indiscutível a necessidade de incluir os bens digitais na herança 

Por Rhuana Rodrigues César
Publicado em: 04/07/2018


Com 22% da população mundial utilizando mídias sociais e 1,86 bilhão de usuários ativos, falar sobre planejamento sucessório e herança digital se tornou a ordem do dia[1].

Isso porque hoje, além da preocupação ordinária acerca da possibilidade de disposição do patrimônio em vida (forma mais econômica, prática e menos conflituosa de partilha entre eventuais herdeiros), há uma preocupação quanto ao patrimônio virtual, seja ele suscetível de valoração econômica, tal como as moedas virtuais, ou não economicamente valorável, se observado o patrimônio sentimental acumulado, tais como fotografias e filmagens armazenadas na nuvem, posts e mensagens trocadas nas redes sociais, e-books colecionados, games, filmes etc.

E a despeito do direito à herança ter sido alçado como direito fundamental pela Constituição Federal, empresas de tecnologia, provedores de conexão, de conteúdo, hospedagem, dentre outros, não sabem lidar — ao menos de forma clara e transparente para com o usuário e terceiros — com o destino de ativos digitais de pessoas falecidas ou incapacitadas.

No caminho de uma evolução, redes sociais como o Facebook já disponibilizam ferramentas de gerenciamento de conta que permitem a indicação em vida de herdeiros, bem como a enumeração expressa da permissão ou não para que estes tenham acesso a dados e procedam à exclusão da conta.

Além disso, já se tem disponível pelo Facebook um aplicativo chamado If I Die, que permite aos usuários deixar uma mensagem póstuma a ser publicada em sua página.

No entanto, muito se tem questionado se a proteção do interesse e a vontade do usuário na rede deve prevalecer após sua morte. Seria esse acervo virtual um patrimônio a ser transmitido aos herdeiros ou preservado segundo a vontade do falecido?

Fazer valer a vontade do falecido, seja através das ferramentas típicas da era da informação (testamento virtual) ou através do legado “real”, que enfrenta um longo processo de abertura de inventário, é um desafio e merece reflexão.

As cortes de Justiça brasileiras já foram instadas a decidir em casos concretos se permitiam ou não o acesso a perfis, contas de e-mails etc. Por vezes, a solicitação era para que determinado perfil e/ou conta fosse excluída, e inúmeras outras vezes, para que a sua manutenção fosse determinada, com liberação do acesso pelos herdeiros não identificados e/ou já designados virtualmente, havendo uma certa consonância no entendimento, a despeito das poucas decisões, de que os bens analógicos e digitais devem ser tratados da mesma forma que os reais, materialmente tangíveis.

A Justiça de Mato Grosso do Sul, por exemplo, determinou que o Facebook tirasse do ar a página da jornalista Juliana Ribeiro Campos, 24 anos, que morreu em maio de 2012 por complicações após uma endoscopia. A decisão estabeleceu prazo de 48 horas, a partir da notificação, para cumprimento da ordem e atendeu a uma ação aberta pela mãe da jovem, a professora Dolores Pereira Ribeiro, 50 anos[2].

Em outros países, as cortes de Justiça divergem, tendo por exemplo a corte alemã rejeitado pedido de uma mãe para ter acesso à conta de Facebook de sua filha, morta em 2012. Na segunda instância, a corte de Berlim reformou a decisão anterior, pronunciando que o direito de privacidade nas telecomunicações se estende ao mundo digital e que a privacidade da menina não deveria ser violada. Nesse caso, declarou-se que o direito à privacidade se sobrepunha ao direito de herança[3].

Na prática, não há lei clara sobre o tema, mas existem dois projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que buscam regular tais fatos da vida virtual que em muito causam transtornos na vida real: o Projeto de Lei 8.562/2017, que está aguardando votação na Câmara dos Deputados, e o Projeto de Lei 4.099/2012, que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado para apreciação.

O segundo projeto (PL 4.099/2012), mais simplista, apenas diz o óbvio para aqueles que tratam o patrimônio digital com identidade ao real, ou seja, que deverão ser transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas e arquivos digitais de titularidade do autor da herança.

Já o primeiro projeto (PL 8.562/2017) buscou não somente definir o que seria herança digital, ao propor o acréscimo do artigo 1797-A ao Código Civil, mas, também, o que poderia ser transmitido (senhas, redes sociais, contas da internet, qualquer bem e serviço virtual ou digital), caso não haja disposição em contrário do falecido com capacidade para testar, bem como os poderes do herdeiro na gerência de tal herança.

Mas a pergunta que ainda permanece nesses casos é: quanto ao legado digital do falecido, este pode ser disponibilizado, transferido, mesmo que contenha dados e informações de outros usuários?

O usuário falecido certamente trocou inúmeras mensagens, compartilhou dados com terceiros que muitas vezes também terão a sua esfera individual, mesmo que virtual, invadida, acaso o acesso à herdeiros seja liberado e legalmente autorizado.

Como tratar o efeito desses acessos e definir eventuais limites? Aplicar-se-ia a já existente legislação de proteção à honra, imagem e intimidade, inclusive a terceiros cuja esfera individual restar violada pelo acesso de herdeiros a conteúdo antes preservado entre partes?

Nestes novos tempos, no mínimo interessantes, não podemos simplesmente transformar direitos adquiridos a expectativas de direitos, muito menos tornar virtual norma constitucional real que bem protege a privacidade dos indivíduos de forma geral.

A necessidade de inclusão dos bens digitais dos indivíduos na herança é indiscutível, no entanto, em tempos de rápida evolução — ao menos até que a geração Z ou os nativos digitais fiquem para trás — deve-se tratar com seriedade os efeitos que as interferências dos atos virtuais podem causar na vida real.

Fonte: Conjur
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