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Breves considerações sobre a usucapião extrajudicial

Por Debora Santiago e Alexandre Clápis
Publicado em: 27/08/2018
 
O regulamento trazido pelo Provimento nº 65 do CNJ  



A usucapião consiste em forma de aquisição originária de um direito relacionado a um bem pela posse prolongada da coisa, atendidos determinados requisitos legais.

Trataremos aqui da usucapião de bens imóveis pela via extrajudicial, modalidade trazida pela Lei Federal nº 13.105, de 16.03.2015 (novo Código de Processo Civil – CPC), que introduziu alterações na Lei Federal nº 6.015, de 31.12.1973 (Lei de Registros Públicos – LRP)1, posteriormente regulamentada por meio do Provimento nº 65 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

Desjudicialização trazida pelo novo CPC

O novo CPC inseriu o artigo 216-A na LRP, instituindo o procedimento extrajudicial de usucapião, que pode ser utilizado, por opção da parte interessada, e sempre nas hipóteses em que não haja litígio, para o reconhecimento da aquisição por usucapião de qualquer direito real imobiliário.

Dessa forma, o processo extrajudicial de usucapião, conduzido diretamente no Registro de Imóveis competente, passou a ser, ao lado do processo judicial, uma forma possível de reconhecimento de aquisição originária de imóveis. Afinal, se não há litígio, a atuação do Estado-juiz é prescindível.

A desjudicialização deve ser bem recebida pela comunidade jurídica e pela sociedade, sendo recomendável como forma de tirar do Poder Judiciário demandas que não contenham disputas entre partes, consistindo em medida salutar na busca de maior celeridade, redução de custos e diminuição da sobrecarga de processos.

Exemplos de desjudicialização que foram bem recebidos são os institutos do divórcio e do inventário, que passaram a ser processados pelos tabeliães de notas, quando atendidos os requisitos legais.

Nesse sentido, inexistindo lide, ou seja, quando todas as partes potencialmente envolvidas estão de acordo, a via extrajudicial ou administrativa será sempre uma opção para o reconhecimento da usucapião, de forma que a via judicial permanecerá sendo uma alternativa.

Essa constatação parece óbvia, já que entendimento diverso feriria o direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário previsto no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal. Além disso, a própria LRP trata, no caput do artigo 216-A, do reconhecimento extrajudicial de usucapião “sem prejuízo da via jurisdicional”. De todo modo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já reforçou esse entendimento2.

A respeito da interação entre a via administrativa e a judicial, o Provimento nº 65 do CNJ permite a suspensão do procedimento desta via pelo prazo de trinta dias, ou até mesmo sua desistência, para a adoção daquela, sendo que as provas produzidas na via judicial poderão ser sempre utilizadas na administrativa.

É importante destacar, ainda, que o processo administrativo poderá ser objeto de revisão durante o seu curso ou mesmo após o seu término.

Forma originária de aquisição do direito real de propriedade

O reconhecimento da usucapião pela via extrajudicial não altera a natureza de aquisição originária do direito real de propriedade (ou seja, desvinculada de qualquer relação com o titular anterior), tal qual tivesse sido a usucapião declarada pela via jurisdicional. Sendo aquisição originária, não será devido o pagamento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis – ITBI.

Alterações na LRP e o Provimento nº 65 do CNJ

O tratamento sobre o reconhecimento extrajudicial de usucapião inserido pelo novo CPC na LRP, em 16.03.2015, consistiu em importante inovação sobre o tema; contudo, tratou da matéria de maneira genérica.

Dessa forma, a Lei Federal nº 13.465, de 11.07.2017, alterou a LRP na tentativa de corrigir imprecisões legais (quando especifica a aplicação do artigo 384 do CPC para tratar da ata notarial) e tratar de temas não abordados anteriormente (como no caso de o imóvel usucapiendo consistir em unidade autônoma de condomínio edilício). Contudo, referida lei também não detalhou a matéria em questão.

Em 14.12.2017, foi editado o Provimento nº 65 do CNJ, o qual, com o objetivo de regulamentar e padronizar o procedimento relativo à usucapião extrajudicial em todo o território nacional, estabeleceu diretrizes para o seu processamento no âmbito dos serviços notariais e de Registro de Imóveis.

Procedimento para reconhecimento da usucapião extrajudicial

O processo de usucapião extrajudicial nada mais é do que um procedimento administrativo, conduzido pelo Oficial Registrador, voltado para a análise de um conjunto probatório, com o fim de verificar se foram atendidos os requisitos legais necessários para a aquisição originária do direito real de propriedade imobiliária. Ao final, o Oficial Registrador irá deferir ou denegar o pedido de reconhecimento de usucapião.
 
Nesse sentido, a legislação aplicável ao tema não exige intervenção judicial ou do Ministério Público, muito menos homologação judicial de seu resultado. Isso porque inexiste lide e a matéria versa sobre direitos patrimoniais disponíveis3.

O requerimento será processado diretamente no Registro de Imóveis da circunscrição em que estiver localizado o imóvel usucapiendo (ou a maior parte dele, caso esteja localizado em mais de uma circunscrição). Deverá ser formulado pelo requerente, sempre representado por advogado ou defensor público, devendo atender, no que couber, aos requisitos da petição inicial estabelecidos no artigo 319 do CPC.

O pedido será autuado pelo registrador, gerando uma prenotação4, a qual terá seu prazo prorrogado até o acolhimento ou a rejeição do pedido. Se já existir procedimento de reconhecimento extrajudicial de usucapião sobre o mesmo imóvel, a prenotação do novo procedimento permanecerá suspensa até o acolhimento ou indeferimento do procedimento anterior.

O requerimento deverá indicar: (i) a modalidade da usucapião requerida e sua base legal ou constitucional; (ii) a origem e as características da posse, bem como informações sobre edificações, benfeitorias ou acessões no imóvel usucapiendo; (iii) o nome e estado civil de todos os possuidores anteriores cujo tempo de posse foi somado ao do requerente para completar o período aquisitivo; (iv) o número do registro imobiliário (matrícula ou transcrição) onde se encontra inserido o imóvel usucapiendo (ou a informação de que não se encontra matriculado ou transcrito); e, por fim, (v) o valor atribuído ao imóvel usucapiendo (será o valor venal do imóvel relativo ao último exercício, conforme lançamento do imposto predial e territorial urbano ou do imposto territorial rural, ou, quando não estipulado, será o valor de mercado aproximado).

Deverá ser instruído com os seguintes documentos: (i) ata notarial contendo as informações do requerente e respectivo cônjuge ou companheiro5, se houver, bem como do titular do imóvel lançado na matrícula, atestando a descrição e as características do imóvel, o tempo da posse, a forma de aquisição do imóvel, a modalidade de usucapião pretendida, o número de imóveis atingidos pela pretensão aquisitiva e sua localização, o valor do imóvel e outras informações que o tabelião entenda pertinentes; (ii) planta e memorial descritivo assinados por profissional habilitado e pelos titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo, ou na matrícula dos imóveis confinantes, ou pelos ocupantes a qualquer título; (iii) justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a cadeia possessória e o tempo da posse; (iv) certidões negativas de distribuidores forenses atualizadas do local de situação do imóvel usucapiendo, atestando a inexistência de ações que caracterizem oposição à posse do imóvel, em nome do requerente (e demais possuidores, em caso de sucessão de posse) e do titular do imóvel na matrícula, bem como seus respectivos cônjuges ou companheiros, se houver; (v) descrição georreferenciada do imóvel, quando assim exigido por lei; (vi) instrumento de mandato (público ou particular), com poderes especiais e firma reconhecida (por semelhança ou por autenticidade), outorgado ao advogado pelo requerente e pelo seu cônjuge ou companheiro; (vii) declaração do requerente e seu cônjuge ou companheiro, se caso, outorgando ao defensor público a capacidade postulatória da usucapião; e (viii) certidões atualizadas dos órgãos municipais e/ou federais, conforme o caso, demonstrando a natureza urbana ou rural do imóvel usucapiendo.

Se os titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo, ou na matrícula dos imóveis confinantes, ou os ocupantes do imóvel, a qualquer título, não assinarem a planta mencionada no item (ii) do parágrafo acima, e se não for apresentado, por essas pessoas, um documento indicando sua anuência, o Oficial do Registro de Imóveis, por meio do Cartório de Títulos e Documentos, deverá notificar tais pessoas para manifestarem seu consentimento em quinze dias, sendo o silêncio considerado concordância. Caso as notificações restem infrutíferas, o Oficial Registrador promoverá a notificação por edital, mediante publicação, por duas vezes, em jornal local de grande circulação, pelo prazo de quinze dias cada um, interpretado o silêncio do notificando como concordância.

Tal consentimento será considerado outorgado, sendo dispensada a notificação, caso o requerente apresente justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica com o titular registral (como um compromisso ou um recibo de compra e venda, uma proposta de compra, uma cessão de direitos etc), acompanhado de prova da quitação das obrigações e de certidão do distribuidor cível atualizada, demonstrando a inexistência de ação judicial contra o requerente ou contra seus cessionários envolvendo o imóvel usucapiendo.

A intimação dos confrontantes será dispensada se o imóvel usucapiendo for matriculado com descrição precisa, com perfeita identidade entre a descrição do imóvel e a área objeto do requerimento de usucapião extrajudicial.

O Oficial do Registro de Imóveis expedirá edital para ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão manifestar-se nos quinze dias subsequentes ao da publicação.

Por fim, estando em ordem a documentação e não havendo impugnação, o Oficial do Registro de Imóveis emitirá nota fundamentada de deferimento e efetuará o registro da usucapião.

A decisão que reconhece a usucapião extrajudicialmente – assim como a que reconhece a usucapião judicialmente – é meramente declaratória. Dessa forma, embora não a constitua, o registro da usucapião no Registro de Imóveis faz com que a usucapião seja publicizada, tendo o efeito de tornar o direito adquirido oponível erga omnes e de conferir disponibilidade ao seu titular.

Caso o Oficial do Registro de Imóveis rejeite o pedido, deverá elaborar nota de devolução fundamentada. A rejeição do pedido extrajudicial não impedirá o ajuizamento de ação de usucapião no foro competente.

Tempo de posse

O tabelião deverá atestar o tempo de posse6, ou seja, comprovar a posse exercida pelo requerente e seus antecessores, se o caso, por meio de provas, tais como comprovantes de pagamentos de tributos, de contas de água e de energia elétrica, fotografias no imóvel, depoimentos de pessoas que presenciaram a posse ao longo dos anos, dentre outras. A mera declaração de posse por parte do requerente não será suficiente.

O tempo de posse necessário à caracterização da usucapião irá depender da modalidade de prescrição aquisitiva requerida, conforme requisitos legais.

Existência de ônus ou gravames

A existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião. Contudo, eventual impugnação do titular do direito que grava o imóvel poderá impedir o reconhecimento da usucapião pela via extrajudicial.

O reconhecimento extrajudicial da usucapião de imóvel matriculado, por si só, não extinguirá eventuais restrições administrativas nem gravames judiciais regularmente inscritos na matrícula do imóvel. O requerente deverá formular pedido de cancelamento dos gravames e restrições diretamente à autoridade que emitiu a ordem.

Direitos passíveis de serem usucapidos pela via extrajudicial

Todos os direitos reais que tenham por seu pressuposto o direito à posse, com função de fruição, são passíveis de usucapião.

Os direitos passíveis de serem usucapidos pela via extrajudicial são os mesmos que podem ser usucapidos pela via judicial, tais como a propriedade, o usufruto, o uso, a habitação, a servidão aparente, o domínio útil, a propriedade superficiária.

Da mesma forma, não podem ser usucapidos pela via extrajudicial os bens e direitos que não podem ser usucapidos judicialmente, tais como os direitos reais de garantia, os bens públicos e os imóveis da Caixa Econômica Federal vinculados ao Sistema Financeiro de Habitação – SFH7.

Espécies de usucapião e abrangência da usucapião extrajudicial

Não há limitação no artigo 216-A da LRP quanto à espécie de usucapião que possa ser reconhecida pela usucapião extrajudicial, tampouco há alguma incompatibilidade por conta da natureza jurídica de alguma espécie, de modo que qualquer espécie de prescrição aquisitiva pode ser reconhecida extrajudicialmente se presentes os requisitos para tanto (posse ad usucapion em pelo tempo adequado, aliada aos demais requisitos eventualmente exigidos, a depender da espécie de usucapião).
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1Alterada também pela Lei Federal nº 13.465, de 11.07.2017.
2O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu ser inafastável a jurisdição, o que decorre não apenas da Carta Magna, mas da própria lei aplicável ao caso. Apelação nº 1005388-18.2016.8.26.0126, de relatoria do desembargador Dr. José Carlos Ferreira Alves, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Acórdão publicado em 27.09.2017.
3Havendo lide ou versando a matéria sobre direitos indisponíveis, a atuação do Estado-juiz faz-se necessária.
4Prenotação é a anotação prévia e provisória no protocolo de um título apresentado para registro, que passará a gozar de prioridade no registro em relação àquele protocolado posteriormente.
Segundo o artigo 186 da LRP, o número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente.
5Será dispensado o consentimento do cônjuge do requerente se estiverem casados sob o regime de separação absoluta de bens (artigo 4º, §4º do Provimento nº 65 do CNJ).
6Julgado recente asseverou que somente o jus possessionis (i.e. que decorre da posse; é o direito de posse) é apto a possibilitar a aquisição da propriedade por usucapião, de forma que o jus possidendi (i.e. que decorre da propriedade; é o direito à posse, o direito de possuir), por si só, não é suficiente para fins de reconhecimento de usucapião. Apelação nº 1005106-25.2017.8.26.0132, de relatoria do Corregedor Geral da Justiça Dr. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, do Conselho Superior de Magistratura. Acórdão publicado em 08.08.2018.
7Segundo entendimento consolidado do STJ, os imóveis da Caixa Econômica Federal vinculados ao SFH são afetados à prestação de serviço público, devendo ser tratados como bens públicos, sendo, pois, imprescritíveis (REsp nº 1.448.026/PE, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça. Acórdão publicado em 21.11.2016).
DEBORA ANDRADE STUPP SANTIAGO – advogada especializada em direito imobiliário do Stocche Forbes Advogados.
ALEXANDRE LAIZO CLÁPIS – sócio da área imobiliária do Stocche Forbes Advogados
Fonte: Jota
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