Na história anterior sobre a saga dos meus familiares imigrantes, eu narrei como uma bisavó minha, a qual todos chamavam de Luiza, na realidade foi registrada como Aloysia, assim como meu trivasavô Pedro era, na verdade, Petrus; bem como um tataravô se chamava Joh: (isso mesmo, com dois pontos), uma tataravó era Dominicaes e outra Rosae, todos nomes em latim. No texto de hoje, o episódio registra um fato comum a grande parte dos italianos que veio para o Brasil no final do século 19 e início do 20: a tradução do nome e sobrenome para o português.
Durante o ensino primário, no interior de São Paulo, eu contava os dias para a chegada das férias sonhando com a ida para o sítio de meus avós paternos. Além de descobertas incríveis sobre aquele mundo selvagem, os pães e bolos feitos no forno à lenha, os doces e as histórias da minha avó me encantavam. O sítio de meus avós ficava junto a uma área de terra próxima ao Rio Paraná - com um ecossistema parecido com o do pantanal, com araras de muitas cores, tuiuiús, jacarés, sucuris, onças pintadas - localizada no lado do Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul). Minha avó paterna se chamava Santina Benedicta, assim mesmo com um ‘c’ no ‘Benedita’. Santa, como o nome diz, à noite, sob o céu de estrelas daquele lugar distante, povoado de bichos e vagalumes, ela contava histórias de sua infância e adolescência em Caconde, região da Mogiana (SP), onde seus país se instalaram após terem desembarcado no Porto de Santos, vindos da Itália. Seu pai se chamava Domingos Benedicto, dizia ela, e casou-se no Brasil com uma mineira de Guaxupé, Euphrosina Custódia de Jesus, após o falecimento de sua esposa italiana, de nome Joanna. Ao buscar os registros de meus antepassados, a maior dificuldade foi encontrar dados pessoais precisos sobre esse meu bisavô Domingos Benedicto. Não havia nenhuma menção ao nome dele nas listas de passageiros dos navios que chegaram da Itália. O nome dele também está ausente nos registros dos estrangeiros que passaram pela Hospedaria de Imigrantes, em São Paulo. Nos registros dos filhos dele no Brasil, incluindo minha avó Santina, e também na certidão de óbito dele, constava apenas que era italiano, mas sem referência à cidade ou região de onde veio. Eu já pensava em desistir de encontrar as origens do tal Domingos Benedicto quando me enviaram um link de um texto do escritor Zé Filardo, de Caconde. No post, de 2016, Filardo conta a história dos registros de imigrantes estrangeiros que viviam na cidade em 1939. O livro de registros foi elaborado pela Delegacia de Polícia de Caconde em cumprimento ao Decreto-Lei nº 406, de 4 de maio de 1938, durante o Estado Novo, isto é, período da ditadura de Getúlio Vargas. O documento histórico foi encontrado na lixeira da Delegacia de Polícia (pasmem!) e, segundo Zé Filardo, estava sob os cuidados de uma professora do Colégio Scala, de nome Regina Orrico. Enviei um e-mail para o colégio pedindo informação se havia registros de algum sobrenome Benedicto na lista. Prontamente, a professora Regina me respondeu e enviou para mim a página de registro de Luiz Benedicto, irmão de minha avó Santina. Apesar da decepção – no documento se repetia os nomes dos pais dele como Domingos Benedicto e Joanna – havia uma informação preciosa que eu tanto buscava: ele havia nascido, segundo o documento, em ‘Ursago’, com ‘U”, Treviso. Pesquisei na internet é descobri a comuna de nome Orsago, com ‘O’, bem próxima de Treviso. Era um bom sinal. Pedi informações ao serviço de registro e à igreja de Orsago, mas a resposta foi negativa. Não havia nenhum Domingos Benedicto registrado por lá. Minha reação foi: deixa prá lá, é impossível. Semanas depois, para minha surpresa, um funcionário do cartório de registro civil de Caconde me enviou mensagem informando que uma pessoa da família do Domingos Benedicto havia pedido retificação judicial em nomes do registro de nascimento de uma vó dele. Reanimado, solicitei imediatamente que consultasse a pessoa sobre a possibilidade de me passar o e-mail ou um telefone dela para contato. No dia seguinte, o funcionário do cartório me enviou o e-mail desse meu parente distante, morador de Goiânia. Fiz o contato e ele me enviou rapidamente o documento que revelava toda a confusão: Domingos Benedicto, meu bisavô, na verdade, foi registrado na Itália como Domenico Benedet. Natural de Orsago, próximo a Treviso, no Vêneto. Era casado com Giovanna Bottan, com quem veio para o Brasil, e não Joanna, como o registrado nos documentos brasileiros. O caso dos Benedicto, que na verdade são Benedet, foi o mais complicado entre os italianos nas minhas pesquisas. Outro bisavô meu, de nome Alfonso Ricciardi, foi bem mais fácil. O único erro nos documentos brasileiros relacionados a ele foi a troca de Alfonso, com ‘l’, por Afonso, sem o ‘l’. O sobrenome Ricciardi foi mantido em quase todos os documentos no Brasil, o que facilitou a pesquisa. A lista de passageiros do navio em que Alfonso Ricciardi veio aos 14 anos de idade, em 1897, de Gênova, está intacta. Mas não deixaram de aportuguesar o nome do pai dele (meu trisavô), de Pietro para Pedro. Também erraram feito no nome da mãe dele (minha trisavó), que se chamava Amabilia Caponi e no Brasil ficou como Amabile ou Amália, dependendo do documento consultado. A família toda viajou desde Castel San Niccolò, uma comuna próxima de Arezzo, na linda região da Toscana, e se instalaram e viveram em cidades paulistas como Monte Alto, Cajobi e Monte Azul Paulista. Quando eles partiram da Itália, Catel San Niccolò tinha cerca de 7 mil habitantes; hoje tem pouco mais de 2 mil, segundo o Istituto Nazionale di Statistica (ISTAT). O nome Castel San Niccolò dado à comuna se refere a um castelo medieval construído na região. O antigo nome do castelo era Glanzole, conforme registros de Henrique VI (1165-1197), um germânico que foi rei da Germânia, Sacro Imperador Romano e Rei da Sicília. Consta em livros que o castelo foi uma das fortalezas mais importantes do conde Guidi da Battifolle, e sua história anda de mãos dadas com a da poderosa família feudal de Casentino. Sua tirania e crueldade teria levado a população a se revoltar em 1348. Sobre meus parentes imigrantes portugueses, que me deram o sobrenome Martins, bem..., não pense que, apesar de a língua ser a mesma, não houve confusão nos registros de nomes e sobrenomes. Isso sem contar a ausência de referência sobre locais de nascimento em Portugal. Mas essa é uma outra história... *Célio Martins é jornalista e escritor. Atuou em vários veículos de comunicação brasileiros, como Folha de S. Paulo, Folha de Londrina, O Estado do Paraná, Correio do Estado (MS), TV Iguaçu (SBT), Rede CNT e TV Campo Grande (SBT). Na Gazeta do Povo passou pelas editorias de Esportes, Curitiba, Paraná, Brasil, Mundo e foi editor da Primeira Página do jornal impresso. É autor e editor do blog Certas Palavras, com publicações nas áreas de política, meio ambiente, cultura e cotidiano. Fonte: Gazeta do Povo | ||
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