O Tribunal de Justiça de Santa Catarina publicou, no dia 9 de setembro, significativo e paradigmático acórdão sobre caracterização, ou não, de união estável, que nos remete a pensar na importante dicotomia entre público e privado.
Trata-se da Apelação 0026473.20108.24.0023, de relatoria do desembargador Jorge Luis Costa Beber, e já noticiado pelo boletim eletrônico do IBDFam 509. A história do casal, submetida ao referido julgamento, é de uma relação amorosa de dois homens, por cerca de dez anos. Ao final do relacionamento, uma das partes dizia que era apenas namoro e, portanto, daí não decorreria nenhum direito; a outra parte sustentava que era união estável e, portanto, que deveriam ser partilhados os bens adquiridos na constância da união a título oneroso. O TJ-SC entendeu que se tratava de união estável. A discussão central já é lugar-comum e faz parte da maioria dos processos judiciais envolvendo união estável, ou seja, qual a diferença entre namoro e união estável? Assim como na parentalidade socioafetiva há uma linha tênue entre paternidade/maternidade socioafetiva e padrasto/madrasta, no namoro essa distinção tem sido cada vez mais difícil. É que namorados, às vezes, têm filhos sem planejar, moram juntos para dividir despesas e só querem continuar namorando sem constituírem uma família conjugal. E é nesta linha tênue que mora o perigo. A particularidade do caso relatado pelo referido acórdão atinge milhares de outros casais hétero ou homoafetivos, seja no casamento ou na união estável, e advém do fato de terem mantido relações extraconjugais e se isso, por si só, anularia ou inviabilizaria a conjugalidade, ou melhor, se pode descaracterizar a união estável. In casu, eles tinham uma relação aberta, o que significava que era permitido entre eles terem outras relações para além do núcleo central daquela união estável. Consentida ou não, as relações extraconjugais não podem ter a força de descaracterizar um núcleo familiar. Se assim fosse, família constituída pelo casamento deixaria de sê-la se o casal tivesse relações extraconjugais, ou a prática de swing, por exemplo. A questão que verdadeiramente interessa aqui, e que o acórdão nos põe a refletir, é se o Estado pode interferir no código particular de cada casal. Quem deve ditar as regras e economia do desejo de cada casal é o próprio casal. Na esfera da intimidade da conjugalidade, só, e somente só, o casal é que deve decidir sobre suas práticas sexuais. Se cabe mais de uma pessoa na relação, se querem ou não fazer sexo apenas para reprodução, ou apenas recreativo, é uma decisão do casal. Fora disso, é moralismo perverso e contraditório. Por exemplo, algumas religiões só permitem sexo no casamento, e mesmo assim apenas para reprodução. E se o casal optar por não ter filho, não pode casar? Todas essas questões da sexualidade transitam por um terreno perigoso e movediço, e muitas vezes estão a serviço de uma moral estigmatizante e de uma relação de dominação e de poder. E o Direito existe e deve estar a serviço não apenas da paz social e da pacificação dos conflitos, mas também da preservação e respeito aos direitos do sujeito de desejo. A palavra de ordem da Constituição da República, a dignidade da pessoa, perde todo o seu sentido se não houver respeito ao sujeito desejante e à sua singularidade. Obviamente que os limites ao desejo são necessários quando ele ultrapassa os limites do outro e desrespeita terceiros e pessoas vulneráveis. Somente nesses casos o Estado deveria intervir. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre esse assunto: a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma concomitante relação sentimental a dois. No que andou bem a nossa Lei Maior, ajuízo, pois ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente traída, sabido que esse órgão chamado coração “é terra que ninguém nunca pisou”. Ele, coração humano, a se integrar num contexto empírico da mais entranhada privacidade, perante a qual o ordenamento Jurídico somente pode atuar como instância protetiva. (RE 595.609, relator ministro Ayres Britto, julgado em 9/4/2012, publicado em DJe-076 de 18/4/2012. Fidelidade e lealdade são valores que a doutrina vem tentando diferenciar, e o acórdão o fez muito bem: a tolerância à infidelidade, portanto, é critério do casal, e o conservadorismo do julgador, sua formação sob os influxos da família monogâmica, seus preceitos com novas formas de relações baseadas no afeto, na união de propósitos, não podem impregnar a decisão judicial que envolva um modelo não ortodoxo de união quando essa sistemática é aceita com naturalidade entre os conviventes, que satisfazem, à exaustão, todos os demais requisitos de uma sociedade homoafetiva de fato (trecho do acórdão do TJ-SC, rel. Jorge Beber). O conceito de família não pode ser descaracterizado se determinado núcleo familiar foge dos padrões ortodoxos. A dignidade da pessoa pressupõe a compreensão e o respeito ao seu desejo, inclusive o de constituir uma família fora dos padrões convencionais. Essa é a hermenêutica constitucional atual balizada pelo Supremo Tribunal Federal ao dizer que a realidade familiar não pode ser reduzida a modelos pré-concebidos (julgado 898.060 – min. Luis Fux). Em outras palavras, as formas de amar e constituir família, fora aos padrões tradicionais, não pode significar exclusão, desamparo e invisibilidade jurídica. A ideia do amor romântico, da alma gêmea, não é mais um ideal seguido por todos. Há quem prefira outras formas e possibilidades. Desde que Freud revelou ao mundo a existência do inconsciente e do desejo, a sexualidade passou a ser vista e trilhada sob espectros bem mais amplos do que pode imaginar nossa vã filosofia. E o Estado não pode proibir ou se intrometer na intimidade do desejo do casal. Deve apenas atribuir responsabilidade àqueles que escolhem seguir caminhos diferentes dos já estabelecidos em lei. | ||
Fonte: Conjur | ||
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