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O perigo de usar imóvel como garantia para financiamentos e empréstimos 

Por Mércia Carmeline
Publicado em: 30/07/2018


Em 1997, a Lei 9.514 foi promulgada, disciplinando a alienação fiduciária de bem imóvel a favor do credor (leia-se bancos). Foi um marco. Por esse instituto, a propriedade fiduciária e a posse indireta do bem alienado são do credor e a posse direta permanece com o devedor, de forma que no caso de inadimplemento, a tomada do imóvel requer somente a observância de determinados procedimentos junto ao cartório de registro de imóveis para consolidar a propriedade do bem em nome do credor que, então, promoverá leilão público para sua venda.

Em contrapartida à agilidade, redução de riscos e segurança jurídica que essa nova lei proporcionou ao segmento imobiliário do mercado financeiro, a promessa era a redução das taxas de juros dos financiamentos imobiliários.

Não foi o que aconteceu. Pelo menos não na proporção dos benefícios auferidos pelos credores. A alienação fiduciária alterou, inclusive, a interpretação dada à impenhorabilidade do bem de família pelo judiciário. No Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, a tendência tem sido a favor do cumprimento dos contratos que estabelecem como garantia a alienação fiduciária do bem de família, uma vez que se consiga comprovar que a dívida reverteu em benefício da entidade familiar.

Em 2003, a Lei 10.820 autorizou o desconto de prestações em folha de pagamento e benefícios de aposentadoria e pensão, dando início aos créditos consignados. De novo, a garantia conferida pela empregabilidade, pela segurança do pagamento das parcelas do empréstimo diretamente por meio de desconto da folha de pagamento ou pelo INSS e pela possibilidade de comprometimento de parcela das verbas rescisórias, acenava, para os infelizes devedores, uma significativa redução da taxa de juros.

Porém, nesse caso específico, o que aconteceu (e ainda acontece) foi uma torrente de divulgação não autorizada de dados de aposentados para os bancos cadastrados junto ao INSS (sem mencionar as fraudes), que exploraram e permanecem explorando, sem a menor preocupação ética, com taxas de juros abusivas, principalmente quando da renegociação da dívida, aposentados que acabaram comprometendo a totalidade de seus benefícios, muitas vezes em prol ou por coação dos familiares mais próximos. Os dados que continuam sendo divulgados aos bancos pelo INSS, sem autorização dos aposentados, configuram dados pessoais e estarão protegidos pela Lei de Proteção de Dados que aguarda sanção presidencial.

Em 26 de abril deste ano, o Banco Central do Brasil divulgou a Resolução nº 4.656, dispondo sobre as sociedades de crédito direto e de empréstimo entre pessoas, que devem operar, exclusivamente, por meio de plataformas eletrônicas.

A expectativa, de novo, era de que a estrutura mais leve e ágil dessas plataformas eletrônicas e a desnecessidade de obedecer todos os rácios e restrições aos quais se submetem as instituições financeiras, possibilitaria o aumento da oferta de crédito – empossado nos bancos – e a redução das taxas de juros. Na medida em que a aprovação dessa Resolução se deu em meio ao debate sobre a responsabilidade do Banco Central do Brasil no contexto das frustrações que rondam o cenário nacional, desconfiamos que sua divulgação também pretendeu ancorar a descentralização do setor bancário. Foi o aconteceu? Ainda não.

As fintechs em atividade têm oferecido linhas de crédito pessoal e de capital de giro a micro e pequenas empresas. A possibilidade de securitizadoras emitirem certificados de recebíveis imobiliários (CRIs), com lastro em imóveis que garantam os empréstimos e financiamentos e que serão adquiridos por investidores qualificados, são um caminho para geração de funding às fintechs (funding esse que será direcionado a novos empréstimos/financiamentos).

Se, por um lado, a taxa de juros foi reduzida, significativamente até, considerando que o parâmetro de comparação (taxas de juros dos bancos) é absurdo, por outro lado, esses empréstimos e financiamentos às pessoas físicas e micro e pequenas empresas dependem de garantias e essa garantia tende a ser o imóvel de titularidade dos devedores ou sócios. Nisto reside a atratividade para as fintechs e a potencial catástrofe para os devedores.

Segundo dados do IBGE (Pnad) que já foram analisados pelo setor, os imóveis quitados constituem 68% dos domicílios brasileiros registrados na amostra. Portanto, não basta contribuir para o comprometimento da aposentadoria, do salário, das verbas rescisórias e de parte do FGTS, busca-se, agora, o bem de família. É de supor que as pessoas físicas e os micro e pequenos empresários, que buscam esses empréstimos e financiamentos de ticket pequeno, só detêm o bem de família para oferecer em garantia.

Executivos de fintechs chegam a comparar o mercado de home equity norte americano ao brasileiro, para demonstrar o potencial de crescimento dos financiamentos com lastro em imóveis no Brasil. A comparação é leviana. Se querem fazê-la, não ocultem os últimos escândalos.

Em artigo anterior, publicado no JOTA, alertamos para a necessidade do Banco Central exercer uma fiscalização acirrada sobre as atividades dessas sociedades, porque as disposições da Resolução antecipavam a possibilidade de utilização das fintechs pelos bancos, no mínimo, como veículo de renegociação de créditos. Nossos receios aumentaram.

Não se pode impedir que as pessoas tomem decisões, mas é preciso avaliar sua capacidade para fazê-lo, sobretudo quando se trata de decisão de alto risco. Não podemos permitir a exploração criminosa da ignorância e do desequilíbrio emocional de um pai de família desempregado e endividado. Precisamos impedir que o pobre de hoje se transforme no miserável de amanhã.

O Código do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), prevê em seu artigo 4º que a Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, reconhecendo a sua vulnerabilidade e o cabimento de ação governamental, por iniciativa direta ou indireta, no sentido de garantir tal proteção (grifos nossos).

O Banco Central do Brasil tem o dever legal de estabelecer vedações às fintechs, proibindo o gravame de bem de família no caso de crédito pessoal e estabelecendo condições para concessão de crédito a micro e pequena empresa. Por exemplo, uma certificação de gestão emitida pelo Sebrae, de forma que esse micro ou pequeno empresário ou potencial micro ou pequeno empresário comprove o conhecimento mínimo necessário de planejamento do seu negócio e de avaliação do risco de alienar a favor da fintech o bem de família.

O governo nunca se preocupou em ensinar a população a poupar, pelo contrário, o apelo ao consumo é agressivo no sentido de transmitir a sensação de riqueza. Não é admissível, entretanto, nem ética, nem legalmente, que o governo, neste caso representado pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central, deliberadamente, permita que a angústia e a ansiedade sejam exploradas por essa nova modalidade de sociedade financeira.

O percentual de mortalidade das pequenas e médias empresas é, historicamente, superior a 50%. Permitir que o alvo das fintechs seja o potencial do mercado imobiliário equivaleria dizer que, no mínimo, 34% dos domicílios brasileiros dados em garantia dos empréstimos e financiamentos seriam alienados para pagamento da dívida. Deixar que isso aconteça configura desrespeito à dignidade, segurança e proteção dos interesses econômicos desses consumidores e, portanto, descumprimento do artigo 4º do Código do Consumidor.

Mércia Carmeline– advogada do escritório Filhorini, Blanco e Carmeline 
Fonte: Jota
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