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Carolina Maria de Jesus: a grande poeta descoberta na periferia de São Paulo

Publicado em: 18/05/2022
Em reportagem especial, a Anoreg/SP destaca a história de vida de uma das primeiras mulheres negras do país que se dedicou à literatura

Em meio ao suor escorrido no rosto dos trabalhadores rurais, a cidade de Sacramento, localizada no sudoeste de Minas Gerais, abrigou não só um local explorado na busca das riquezas minerais, mas também uma das maiores pérolas da literatura negra nacional e internacional, dos últimos anos. Nascida no décimo quarto dia de maio de 1914, Carolina Maria de Jesus foi uma mulher negra rica em poesia. Com o cabelo curto e escuro como a noite, Carolina era mãe solo, moradora da periferia, catadora de resíduos recicláveis e dona de uma escrita sem igual; e ficou conhecida internacionalmente como uma representante da literatura negra no Brasil.

“Carolina deixou para a sociedade brasileira uma das maiores lições que uma mulher que viveu no tempo dela pode deixar: a resiliência”, destaca o jornalista e autor de “Carolina – Uma Biografia”, Tom Farias, sobre a representação da poeta.

Por meio da sua experiência de vida, Carolina de Jesus ganhou não só espaços nas grandes livrarias do mundo, mas também exemplares em mais de 46 idiomas, o reconhecimento da mulher negra mais publicada no mundo e um enorme espaço nesta reportagem produzida pela Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (Anoreg/SP).


Carolina Maria de Jesus (Imagem/Internet)
 
Para elaborar o material, a Anoreg/SP contou com a participação do historiador sobre a vida da poeta, o jornalista Tom Farias. “Através de sua resolução de vida, sob a determinação do mudar a vida através da escrita, a escritora mineira de Sacramento mostrou o quanto é possível transformar vidas pela determinação e, com isso, projetou seu exemplo para as gerações futuras”, enfatiza o jornalista.

Alfabetização em dois anos

Lavando peça por peça à mão, em meio aos dias ensolarados, secos e úmidos da cidade de Sacramento (MG), a Dona Cota, mãe de Carolina, garantia o seu alimento e dos seus sete filhos. Vivendo com muita dificuldade, a mãe da poeta queria permitir às crianças ter uma vida diferente. Então, decidida, a lavadeira analfabeta matriculou os sete filhos no colégio Alan Kardec, a primeira escola espírita do Brasil, onde frequentariam por dois anos, sob sustento da Sra. Maria Leite Monteiro de Barros, para quem a mãe de Carolina trabalhava como lavadeira. Com apenas dois anos em contato com o ensino, a futura grande poeta do país aprenderia a ler e a escrever.

Sem condições de manter as crianças na cidade, Dona Cota e as sete crianças mudam-se para outra cidade do interior do estado, local em todos atuariam como lavadeiros para não passarem fome. Passando muita dificuldade, a família Jesus mudou-se novamente, desta vez para a cidade de Franca, localizada no interior de São Paulo.

Aos 13 anos, Carolina já havia passado mais que fome. O medo, a insegurança, a injustiça e o frio eram rotineiros em seu dia a dia. A desigualdade de etnias também dominava o caminho da escritora e da sua família. “A introdução do Eugenismo no país, entre a segunda metade do século 19 e as primeiras décadas do 20, trouxe um grande prejuízo para a imagem do negro em nossa sociedade, pois tratou o negro como um elemento social incapaz de produzir conhecimento”, ressalta Tom Farias.


Frases retiradas dos livros de Carolina (Imagem/Thais Caroline dos Santos)
 
São Paulo, a cidade para recomeçar

Entre idas e vindas a pé de Minas Gerias para São Paulo em busca de estabilidade financeira e qualidade de vida, a família Jesus se separou em 1933, quando Carolina e sua mãe foram acusadas e presas por exercerem bruxaria, devido a facilidade da poeta com a leitura de livros espíritas.

Quatro anos mais tarde, a mãe de Carolina faleceria, e aos 23 a escritora mudaria definitivamente para o estado da oportunidade: São Paulo. “Carolina viveu na cidade de São Paulo a partir de 1937. Com os percalços da vida e o nascimento dos filhos - João José de Jesus, José Carlos de Jesus e Vera Eunice de Jesus Lima -, todos sem pai que os assumissem, moradora da favela do Canindé, passou a catar papel nas ruas para sobreviver”, conta o historiador.

Amante das palavras desde o seu primeiro contato com o ensino, Carolina de Jesus passaria a utilizar os cadernos velhos encontrados no lixo para escrever suas poesias, contos, romances, provérbios e pensamentos. “Resgatar escritores como Carolina é reconhecer a pluralidade cultural do Brasil que procurou apagar a contribuição da população negra no plano do conhecimento científico e tecnológico”, destaca Tom Farias.

Carolina também recolheria os livros literários e didáticos, o que a levaria a tomar conhecimento sobre a produção literária de autores nacionais e estrangeiros.
 

Carolina de Jesus lendo livro didático sobre gramática (Imagem/Internet)
 
A dificuldade transferida aos cadernos do lixo

Em 15 de julho de 1955, no dia do aniversário de dois anos de sua filha Vera Eunice, Carolina iniciaria o seu primeiro livro, registrando o seu dia a dia como mãe, catadora de resíduos recicláveis e mulher negra de uma comunidade de São Paulo.  Sem saber, a escritora estaria criando uma obra que venderia exemplares em 46 idiomas, com apenas a utilização dos cadernos recolhidos durante a sua jornada de trabalho como catadora. Para Carolina, os cadernos eram como uma forma de gratidão por conseguir colocar comida na mesa, visto que a escritora só os utilizava quando tinha alimento dentro de casa.

“Nos seus escritos há muita poesia, muita fabulação, muita análise sociológica de um Brasil que os próprios brasileiros não conheciam. Carolina não traz esse novo universo, e isto fez com que ela se tornasse bem popular: a escrita precisa, concisa e calcada de elementos narrativos novos, que enriqueceram sobremaneira a nossa literatura”, conta o pesquisador sobre a vida da autora.


O livro “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” foi impresso em mais de 46 idiomas (Imagem/Internet)
 
A grande poeta descoberta na periferia de São Paulo

Durante uma visita na favela do Canindé, zona central da cidade de São Paulo, em busca de pauta para a sua reportagem no jornal Folha da Notei, atualmente a Folha de São Paulo, o jornalista Audálio Dantas encontrou, inusitadamente, Carolina de Jesus saindo de sua casa humilde feita de madeira, localizada em meio a comunidade. Curioso e em busca de notícia, o jornalista se aproximou e conversou com a escritora, que na sequência, o convidou a entrar em sua casa, onde se avistava um armário cheio de cadernos, nos quais Carolina anotava seus pensamentos, poesias e contos.


Carolina Maria de Jesus e Audálio Dantas em Canindé (Imagem/Internet)

Três dias mais tarde naquela semana, Carolina Maria de Jesus seria o assunto da redação jornalística, pois Audálio Dantas levaria os cadernos da escritora para o jornal.

Virando notícia na página nove do jornal Folha da Noite em 9 de maio de 1958, Carolina estaria estampada na matéria “O drama da favela escrito por uma favelada”, na qual o jornalista contaria ao país a história da grande escritora descoberta na favela de São Paulo.


Matéria sobre Carolina no Folha da Noite (Acervo/Folha de S.Paulo)

No mesmo ano, o jornalista Audálio Dantas havia orientado Carolina a divulgar a sua primeira obra “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, que mais tarde ganharia reconhecimento mundial e exemplares em 46 idiomas. “É possível através do livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada identificar a força criativa de Carolina, como uma autora de fôlego, marcado pelo pluralismo de uma linguagem própria, com uma dicção exclusiva”, conta Tom Farias.

O reconhecimento mundial

Com o lançamento do seu primeiro livro em 1960, Carolina passou a ser reconhecida internacionalmente como a negra da literatura brasileira. Ganhando homenagem na Academia de Letras de São Paulo e na Faculdade de Direito de São Paulo, a escritora que, até então, nunca havia ganhado atenção, passou a realizar entrevistas em canais de televisão e rádio por todo o país.

A presença da obra de Carolina naquele período era almejada não só no país inteiro, mas também no exterior. A autora viajou para o Uruguai, Chile e Argentina, recebendo, em Buenos Aires, a “Orden Caballero del Tornillo”.



Carolina de Jesus em viagem ao Uruguai. A foto foi o último registro da escritora (Imagem/Internet)
 
Sem palavras em Parelheiros

Carolina Maria de Jesus dedicou uma grande parte de sua vida na produção de livros e artigos para jornais. “Carolina escreveu vários livros, mas publicou apenas quatro em vida: o “Quarto de despejo”, publicado em 1960; seguido de “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada”, que saiu em 1961; depois “Pedaço da fome”, de 1963, seu único romance; e “Provébios”, de 1963/64. Deixou muitos inéditos, sobretudo romances e os chamados dramas – suas peças escritas para o teatro”, conta Tom Farias.

Em 1969, aos 55 anos, a autora mudou para o seu sítio em Parelheiros, localizado na periferia do extremo sul de São Paulo, juntamente com seus três filhos, onde vivia escrevendo os seus textos inéditos embaixo das árvores. O imóvel foi comprado com as vendas de suas obras no Brasil e no exterior.

No décimo terceiro dia de 1977, às duas horas da madruga, em sua própria casa, as palavras de escritora foram encerradas. Por insuficiência respiratória aguda, em decorrência de uma bronquite asmática, a literatura negra brasileira perderia, aos 62 anos, Carolina Maria de Jesus.

Reconhecida mundialmente com a mulher negra com mais obras publicadas, a escritora deixou bens a inventariar e os três filhos maiores. O registro de óbito de Carolina foi declarado pelo seu primogênito, João José de Jesus, e lavrado no Registro Civil das Pessoas Naturais de Embú-Guaçu no livro de número 3, folha 181, termo 85. Carolina Maria de Jesus foi sepultada no Cemitério do Cipó, Embu-Guaçu, na Grande São Paulo.
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