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Artigo - O contrato de contragarantia como título executivo extrajudicial – Por Gustavo de Medeiros Melo

Publicado em: 30/11/2023
A ordem natural do processo é o órgão julgador — primeiro — conhecer profundamente o conflito (cognição exauriente) para depois decidir quem tem razão e executar o patrimônio do devedor, se necessário. Esse raciocínio tem raízes em brocardo antiquíssimo que só admite invasão patrimonial pelo Estado com suporte em decisão jurisdicional que a autorize (nulla executio sine titulo).
 
Além dos pronunciamentos jurisdicionais (judiciais e arbitrais), o sistema atribui eficácia executiva também a determinados documentos qualificados como títulos executivos extrajudiciais (CPC, artigo 784). [1] Aqui, o caminho é mais curto. A conformação do título executivo pela lei abre um atalho na busca pelo bem da vida, não sendo mais necessária a fase de conhecimento (cognição) do processo para definir a controvérsia sobre quem deve a quem e qual é o objeto da prestação devida.
 
Recentemente, a Lei nº 14.711, de 30.10.2023, o marco legal das garantias, criou mais uma espécie de título executivo extrajudicial no sistema processual civil brasileiro: o contrato de contragarantia ou qualquer outro instrumento que materialize o direito de ressarcimento da seguradora contra tomadores de seguro-garantia e seus garantidores (CPC, artigo 784, XI-A). 
 
Mas, afinal, o que são esses contratos de contragarantia (CCG) e seguro-garantia? Falemos primeiro deste para depois entrarmos no CCG.
 
O seguro-garantia é um negócio celebrado pelo devedor de determinada obrigação, junto a uma companhia de seguros, para garantir ao credor que os compromissos assumidos em determinado projeto, geralmente de infraestrutura, serão cumpridos na forma convencionada,[2] seja pela indenização equivalente ao prejuízo resultante da inadimplência, seja pela intervenção de outro prestador, providenciado pela seguradora, para dar continuidade à obra ou serviço paralisado[3] (cláusula de retomada).[4]  
 
Essa relação tem três personagens: o tomador contrata a garantia no mercado, paga o preço correspondente (prêmio), e a seguradora emite a apólice em favor do segurado. Havendo sinistro, representado pela inadimplência do tomador que não cumpriu a obrigação que lhe cabia, a seguradora deve ser prontamente avisada para investigar as causas da crise contratual, verificar a existência de cobertura e liquidar o dano causado ao segurado, se for o caso. Se houver pagamento da indenização, ela assume o lugar do segurado na relação jurídica de origem e ganha o direito de exercer sua pretensão de ressarcimento contra o devedor da obrigação, como se fosse o próprio segurado.
 
Essa transmissão de direitos e pretensões é produto da sub-rogação prevista para as companhias de seguros (CC, artigo 786; [5] STF, Súmula 188). [6]
 
Pois bem. Antes de emitir a apólice, a seguradora exige uma contrapartida do tomador para assegurar a execução futura desse possível crédito a ser cobrado por força da sub-rogação, incluindo eventual pendência de prêmios não pagos. Chegamos no tema do presente ensaio.
 
O pacto de contragarantia procura dar segurança de que existe patrimônio suficiente reservado a satisfazer a pretensão de “regresso” da companhia, [7] se e quando houver sub-rogação a ser exercida contra o tomador do seguro-garantia. Esse negócio costuma carregar também compromisso de fiadores que assinam o instrumento em caráter solidário, além de obrigações colaterais para reforço da garantia.
 
Com isso fechamos o círculo. O contrato de contragarantia é um negócio celebrado à parte – entre seguradora e tomador – para assegurar o possível ressarcimento a ser exercido via sub-rogação. [8] De livre pactuação, não tem natureza securitária e não se submete à fiscalização do órgão regulador do mercado – a Superintendência de Seguros Privados (Susep).[9]
 
Tradicionalmente, os litígios envolvendo seguradora e tomador são levados ao Poder Judiciário por dois canais de comunicação: (a) ação condenatória do procedimento comum ou (b) ação monitória. A primeira é o caminho mais longo das disputas judiciais que precisam passar pela fase prévia de conhecimento, para definir o mérito da controvérsia, só depois possibilitando a satisfação do direito reconhecido pela sentença.
 
A segunda é uma espécie de tutela diferenciada que pode imprimir mais celeridade na constituição do título executivo judicial a ser formado contra o tomador. Prevista em procedimento especial do CPC à disposição do credor de quantia certa, coisa infungível, coisa móvel determinada ou obrigação de fazer ou não fazer, a monitória requer prova do crédito por documento escrito sem eficácia de título executivo (CPC, artigo 700).
 
Assim, a petição inicial da seguradora deve apontar a dívida líquida, conforme memória de cálculo, e a documentação necessária à prova da relação jurídica e do cumprimento da obrigação pela seguradora. [10] Se tudo estiver aparentemente organizado, o juiz determina que o executado efetue o pagamento em 15 dias, o qual reduz sua verba de honorários de sucumbência para 5% e o isenta das custas. Mas o tomador pode também apresentar sua defesa, na forma de embargos monitórios, o que canaliza toda essa discussão para o procedimento comum em fase de conhecimento. Por fim, se não fizer o pagamento e nem contestar, fica constituído o título executivo judicial, convertendo-se a ação em execução.
 
A Lei nº 14.711/2023, por sua vez, como mencionado de início, abreviou mais esse percurso sinuoso. A companhia de seguros pode mover ação de execução de título extrajudicial para constranger o tomador a lhe reembolsar o valor pago como indenização do seguro-garantia. Para isso, a petição inicial deve ser estruturada com cópia do instrumento de contragarantia ou outro documento que materialize o direito de ressarcimento da seguradora contra tomadores de seguro-garantia e seus garantidores (CPC, artigo 784, XI-A).
 
Aqui, é importante entender o significado da locução “outro documento que materialize o direito de ressarcimento da seguradora”. Se acaso não formalizada a contragarantia em instrumento próprio, a lei está exigindo ao menos alguma prova escrita de sua existência, ou seja, o compromisso selado com o tomador e seus garantidores (fiadores), a demonstrar o caráter consensual desse contrato.
 
Se tudo estiver em ordem, o executado será citado para pagamento em três dias, majorada a dívida em 10% de honorários, sob pena de penhora e avaliação, que será feita por oficial de Justiça sobre os bens indicados pela seguradora exequente. Se essa ordem de pagamento for atendida pelo executado, sua condenação na verba de sucumbência diminui para 5% (CPC, artigo 827).
 
Como se vê, quem tem pretensão executiva já entra em juízo com vantagem sobre o adversário. Nessa fase, diferentemente do módulo cognitivo exauriente que preside o processo de conhecimento, o juiz autoriza desde o início a prática de atos de agressão à esfera jurídica do executado com base em cognição sumária da documentação. [11]
 
A colocação da contragarantia no rol dos títulos executivos representa importante conquista esperada pelo mercado de seguros há muito tempo, um instrumento de mitigação dos riscos de crédito das seguradoras que operam no ramo seguro-garantia, diminuindo os custos da litigância e da própria operação. Aqui, o preço da garantia não tem o propósito de constituir fundo coletivo de prêmios regido pela mutualidade, [12] mas sim uma operação “creditícia” [13] cuja subscrição significa um “selo de qualidade” [14] a cargo de quem tem alta expertise em avaliar a capacidade técnica e financeira do possível devedor, muitas vezes o motivo determinante na celebração do contrato principal.
 
Entretanto, é importante não cair na “ilusão” de que o título executivo extrajudicial esgota toda a discussão do direito material subjacente. [15] O documento que o reveste não é a prova final de que o seu portador tem direito ao bem da vida nele descrito. O título apenas confere ao sujeito o direito de provocar a atividade jurisdicional executiva do Estado, ou seja, o direito de exercer sua pretensão executiva contra alguém.
 
É o que se passa no contrato de contragarantia. Ele não predefine a solução da controvérsia instaurada entre segurado e tomador, até porque foi celebrado no início da relação, quando sequer havia conflito. A contragarantia apenas compromete o patrimônio do devedor e seu garantidor, que poderá ser executado para satisfazer a pretensão da seguradora de ser reembolsada do montante que vier a despender como indenização securitária, ou para cobrança de prêmios não pagos.
 
A contragarantia constitui título executivo extrajudicial sob condição a ser implementada no futuro (CPC, artigo 787 e 798, I, “c”). [16] Sua celebração, por si só, não contém liquidez e exigibilidade suficientes para executar o patrimônio do tomador e seus garantidores, a não ser quando sobrevierem o sinistro, o pagamento da indenização, a notificação do tomador e o vencimento do prazo assinalado pela seguradora, eventos que, devidamente documentados, constituem a prova necessária ao aperfeiçoamento de sua eficácia executiva.
 
Por outro lado, a discussão não acaba aqui. Mesmo havendo título executivo, é possível também que o mérito da controvérsia — questões fáticas e jurídicas em torno de quem deu causa ao descumprimento contratual — venha a ser debatido durante o processo de execução. Na condição de executado, o tomador dispõe de um leque amplo de defesa, em sede de embargos à execução, podendo impugnar não só defeitos formais do título, mas também qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento (CPC, artigo 917).
 
O executado pode debater a crise contratual, imputando ao segurado e a terceiros a culpa exclusiva por sua inadimplência no contrato principal, suscitar excludentes de responsabilidade como fortuito, força maior, fato de terceiro, para questionar o nexo casual que o vincula, matérias como prescrição, decadência etc. [17] São questões que podem influenciar inclusive na concessão do efeito suspensivo à execução, em reforço à garantia do juízo.
 
Os embargos à execução geram um processo incidental que comporta instrução probatória e produz sentença de mérito. Se forem acolhidos com fundamento em alguma daquelas matérias suscitadas pelo tomador, sua decisão declara que a companhia de seguros não faz jus ao reembolso do valor despendido como indenização. Vale dizer, ela exerceu sua pretensão executiva, mas sem direito concreto ao ressarcimento no plano da relação jurídica material.
 
Em outras palavras, o contrato de contragarantia abre as portas do processo de execução para constrangimento imediato do devedor e seus garantidores, sujeitando-os a prazo de pagamento, penhora e avaliação de bens, mas não é uma “sentença declaratória” de que a seguradora tem direito ao reembolso decorrente da sub-rogação.
 
Esse processo de execução precisa estar bem aparelhado com a prova de existência da contragarantia, mas também preparado, se for o caso, para discutir os fatos relevantes diretamente ligados à responsabilidade do tomador como causador do sinistro.
 
As conexões entre o direito material e o processo são verdadeiro dínamo de produção da norma jurídica concreta a reger as relações em crise. Seguro-garantia, contragarantia, sub-rogação e os instrumentos processuais voltados à tutela do direito material constituem o “combo” representativo dessa instrumentalidade, inseridos no movimento lógico-circular de que falava Carnelutti: o processo existe como instrumento do direito material, mas este também não vive sem aquele como garantia de sua boa execução. [18]
 
[1] É comum a doutrina afirmar que a eficácia executiva do título se deve muito mais à representação documental típica do crédito: “Tutto questo induce a ritenere, pertanto, che la efficacia propria del titolo esecutivo va ricollegata non all’atto giuridico materiale, ma al documento: più esattamente, ad una rappresentazione documentale tipica del credito, la quale si inserisce nella esperienza del fenomeno esecutivo come un atto del processo di esecuzione forzata” (ANDOLINA, Italo. Contributo alla dottrina del titolo esecutivo. Milano: Giuffrè, 1982, p. 129-130).
 
[2] Obra de referência no Brasil: POLLETO, Gladimir Adriani. O seguro-garantia: eficiência e proteção para o desenvolvimento. São Paulo: Roncarati, 2021, p. 89.
 
[3] Lei nº 14.133/2021, art. 102; Circular SUSEP nº 662/2022, art. 21, inc. II.
 
[4] GOLDBERG, Ilan. Reflexões a respeito do seguro garantia e da nova Lei de Licitações. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, p. 76, maio/ago. 2022.
 
[5] CC, Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.
 
[6] MELO, Gustavo de Medeiros. Sub-rogação nos contratos de seguro: o termo inicial do prazo de prescrição. São Paulo: Contracorrente, 2021, p. 29.
 
[7] Expressão amplamente utilizada pelos tribunais brasileiros, mas tecnicamente imprecisa, porque a pretensão transmitida pela sub-rogação não se confunde com “direito de regresso”: MELO, Gustavo de Medeiros. Sub-rogação nos contratos de seguro: o termo inicial do prazo de prescrição. São Paulo: Contracorrente, 2021, p. 65.
 
[8] O precedente-referência é o caso Copersucar: STJ, 3ª Turma, RESP nº 1.713.150-SP, Min. Moura Ribeiro, j. 20.04.2021.
 
[9] Circular SUSEP nº 662/2022, art. 32. O contrato de contragarantia, que rege as relações obrigacionais entre a seguradora e o tomador, quando houver, será livremente pactuado, não podendo interferir no direito do segurado.
 
Parágrafo único. O contrato de contragarantia de que trata o caput, não está inserido no âmbito de atuação da Susep.
 
[10] TJSP, 17ª Câmara de Direito Privado, Ap. 1080101-47.2013.8.26.0100, Des. Souza Lopes, j. 05.06.2019.
 
[11] SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do juiz na execução civil. São Paulo: RT, 2017, p. 156.
 
[12] GOLDBERG, Ilan. Reflexões a respeito do seguro garantia e da nova Lei de Licitações. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, p. 70, maio/ago. 2022.
 
[13] Comparato, Fábio Konder. Seguro de garantia de obrigações contratuais. Novos ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 367.
 
[14] CARVALHO, Carlos Eduardo Staudacher de. Reflexões sobre o agravamento de risco no contrato de seguro garantia performance bond. Revista de Direito Privado. Vol. 112, p. 274, 2022.
 
[15] LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Títulos executivos extrajudiciais e o novo CPC. In: ARRUDA ALVIM et al. (Coord.). Execução civil e temas afins – do CPC/1973 ao novo CPC. Estudos em homenagem ao Professor Araken de Assis. São Paulo: RT, 2014, p. 826; SICA, Heitor Vitor Mendonça. Cognição do juiz na execução civil. São Paulo: RT, 2017, p. 195.
 
[16] Condição suspensiva aplicável também aos títulos executivos extrajudiciais: BARBOSA MOREIRA, J. C. Execução sujeita a condição ou a termo no processo civil brasileiro. Temas de direito processual (Sétima Série). São Paulo: Saraiva, 2001, p. 113.
 
[17] Robusto acórdão do STJ debateu a amplitude dos embargos à execução em Contrato Particular de Licenciamento de Software e Aplicativos: “A discussão acerca do efetivo direito de crédito deverá ser realizada dentro dos embargos do devedor, quando confrontada a existência de culpa” (3ª T., RESP nº 1.622.547-SP, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 22.03.2018).
 
[18] CARNELUTTI, Francesco. “Profilo dei rapporti tra diritto e processo”. Três Conferências. Lisboa, 1962, p. 28.
 
Fonte: ConJur 
 
https://www.conjur.com.br/2023-nov-30/o-contrato-de-contragarantia-como-titulo-executivo-extrajudicial/
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