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Atos notariais fora da circunscrição: Riscos, impactos e o princípio da accountability territorial extrajudicial

Publicado em: 08/10/2025
Fundamentos legais da territorialidade
 
O sistema notarial e registral brasileiro desempenha função essencial para a garantia da cidadania, da segurança jurídica e do desenvolvimento econômico. De acordo com dados do CNJ, existem mais de 12.253 serventias extrajudiciais espalhadas pelos 5.568 municípios brasileiros, responsáveis por milhões de atos anuais e pela geração de mais de 106.021 empregos diretos. A relevância desse sistema é reforçada por iniciativas como o programa "Cartório em Números", da ANOREG/BR - Associação dos Notários e Registradores do Brasil, que evidencia sua eficiência e sua contribuição para a sociedade.
 
A atividade notarial e registral, exercida em caráter privado por delegação do Poder Público (CF/1988, art. 236), tem como fundamento a segurança jurídica e a efetivação de direitos fundamentais. A legislação assegura a gratuidade de diversos atos ligados à cidadania, como registros de nascimento e óbito, expedição de segundas vias de certidões e habilitação para casamento em casos de pobreza. Para garantir a sustentabilidade econômica das serventias, a lei 8.935/1994 previu a possibilidade de cumulação de atribuições, ao mesmo tempo em que fixou regras rígidas de territorialidade, proibindo a prática de atos fora do município para o qual foi conferida a delegação. Além disso, vedou-se expressamente a instalação de sucursais, entendidas como unidades secundárias que reproduziriam, em outro local, as atividades da serventia, o que afrontaria o princípio da territorialidade e geraria concorrência desleal entre delegatários.
 
O Tabelião de Notas exerce uma função pública fundada na confiança tanto do Estado quanto dos particulares que a ele recorrem. Sua escolha é livremente realizada pelas partes, independentemente do domicílio destas ou da localização dos bens que sejam objeto dos atos, fatos ou negócios jurídicos. Tal prerrogativa decorre do art. 8º da lei 8.935/1994, segundo o qual "é livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio". Entretanto, essa liberdade de escolha não elimina o limite territorial da delegação conferida pelo Poder Concedente. Com efeito, dispõe o art. 9º da mesma lei que "o tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação". 
 
Da conjugação desses dispositivos resulta que, embora o Tabelião possa ser livremente eleito pelas partes, não lhe é permitido praticar atos notariais fora da circunscrição territorial de sua delegação. Dentro de sua área de competência, contudo, pode lavrar atos em qualquer local, desde que conste no instrumento o lugar em que foram praticados, como ocorre nos atos lavrados em diligência.
 
A restrição prevista no art. 9º da lei 8.935/1994 deve ser entendida como limite mínimo. Dentro de sua competência organizacional, os Estados podem estabelecer regras ainda mais restritivas. Exemplo disso é o Rio Grande do Sul, onde a atuação notarial foi limitada ao âmbito distrital: "Os titulares de Serviços Notariais e de Registros, nos distritos, carecerão de fé pública fora dos limites do distrito ou dos indicados no ato delegatório das funções".
 
De todo modo, a concorrência entre notários na busca por clientela e o desrespeito à competência territorial são práticas duramente coibidas pelas Corregedorias-Gerais dos Estados, resultando em inúmeros procedimentos administrativos disciplinares. Assim, é imperativo que a competição entre Tabeliães de Notas se dê de maneira ética e leal, fundamentada na qualificação profissional e na credibilidade institucional, sem recorrer a expedientes típicos de mercado, tais como publicidade individual, redução de emolumentos, campanhas comerciais ou intermediação indevida de serviços, práticas que comprometem a dignidade e o prestígio da atividade notarial e registral
 
Nesse interim o presente artigo busca em análise descritiva investigar, sem intenção de esgotar os caminhos possíveis, de como se desenvolve o processo de deslocamento indevido de representantes municipais ou oficiais cartorários a outros  territórios, especialmente com intuito de identificar os atores desse processo, bem como investigar à luz da bibliografia pertinente os reflexos sociais, econômicos, jurídicos, sobre  capacidade Estatal e Território, sob o prisma do desenvolvimento local municipal.
 
A despeito da importância do setor, a prática reiterada de atos notariais fora da circunscrição delegada tem provocado preocupações de ordem jurídica, econômica e administrativa. Nesse sentido, o CNB - Colégio Notarial do Brasil, secção do Mato Grosso do Sul promoveu à Corregedoria Permanente de Naviraí - MS, através de ofício 9/24 a comunicação de indício de ofensa à competência notarial através de práticas atentatórias a atividade notarial e registral (art. 9º e art. 31, II, ambos da lei Federal 8.935/1994). No referido documento, consta supostos atos de violação de competência notarial pelo Serviço Notarial de Herculândia, no município de IVATÉ-PR, CNS: 08.688-4
 
O expediente relata que, em consulta à CENSEC - Central Eletrônica de Atos Compartilhados, verificou-se que o Serviço Notarial de Herculândia, localizado no município de Ivaté-PR (CNS: 08.688-4), lavrou diversas escrituras públicas envolvendo como parte o município de Naviraí-MS. Como ainda não houve decisão definitiva sobre o caso, não se pode afirmar com precisão se ocorreu o deslocamento da administração municipal até outra localidade do Paraná para a prática dos atos ou, alternativamente, se foi o próprio tabelião de Herculândia que se deslocou até Naviraí para realizá-los. Diante dessa indefinição, mostra-se necessária a análise das duas hipóteses de forma comparada.
 
Na primeira hipótese, observa-se que o Serviço Notarial de Herculândia, localizado no Estado do Paraná, encontra-se a aproximadamente 132,8 km do município de Naviraí, em Mato Grosso do Sul. Diante disso, surge o questionamento: em respeito ao princípio da supremacia do interesse público, qual seria a justificativa, sob a ótica do desenvolvimento territorial, da capacidade estatal e dos princípios basilares do Direito Público, para que a prefeita municipal realizasse sucessivos deslocamentos entre Naviraí/MS e Ivaté/PR, assumindo custos significativos para os cofres públicos? Além do gasto com tempo e transporte, arcado pelo próprio município de Naviraí/MS, há de se destacar que tais atos também implicam perda de arrecadação tributária local, especialmente do ISSQN, bem como dos repasses vinculados destinados a setores essenciais, tais como o Fundo de Serventias Deficiárias do Estado de Mato Grosso do Sul (Renda Mínima), o FUNADEP (Defensoria Pública), o FUNDPGE (Procuradoria-Geral do Estado) e o FEADMP (Ministério Público), além do ISSQN municipal. O prejuízo, portanto, não recai apenas sobre a serventia notarial local, mas compromete toda a rede institucional de financiamento de políticas públicas estaduais e municipais.
 
Noutro sentido, na hipótese de haver deslocamento indevido de cartorários do município de Herculândia/PR para Naviraí/MS, há caso de flagrante violação de regras de competência legal, ética, improbidade administrativa e violações de direitos civis decorrente de anulabilidade de diversas  escrituras públicas por vício de legalidade, o que impacta significativamente no município de Naviraí - MS e relações econômicas dos titulares de propriedade que se baseiam em documento com insegurança jurídica.
 
O Código de Normas Extrajudiciais do Estado de São Paulo, esclarece a respeito da concorrência notarial, que deve ser pautada pela ética, vejamos:
 
O Tabelião de Notas, ao desenvolver atividade pública identificada pela confiança, tanto do Estado como dos particulares que o procuram, é escolhido livremente pelas partes, independentemente da residência e do domicílio delas e do lugar de situação dos bens objeto dos fatos, atos e negócios jurídicos. A competição entre os Tabeliães de Notas deve ser leal, pautada pelo reconhecimento de seu preparo e de sua capacidade profissional e praticada de forma a não comprometer a dignidade e o prestígio das funções exercidas e das instituições notariais e de registro, sem utilização de publicidade individual, de estratégias mercadológicas de captação de clientela e da intermediação dos serviços e livre de expedientes próprios de uma economia de mercado, como, por exemplo, a redução de emolumentos.
 
Percebe-se a subsunção do disposto no art. 166, inciso VII, do CC, ao art. 9º da lei Federal 8.935/1994, que veda ao tabelião de notas a prática de atos de seu ofício fora dos limites territoriais do município para o qual recebeu delegação. Desse modo, tendo o legislador expressamente proibido a realização de atos notariais além da esfera de competência atribuída, eventual ato lavrado em desconformidade será considerado indevidamente formalizado e, por conseguinte, declarado nulo.
 
O art. 214 da lei de registros públicos determina que as nulidades de pleno direito, quando comprovadas, devem ser reconhecidas de imediato, com a decretação judicial após a oitiva dos envolvidos. O dispositivo também autoriza o juiz a bloquear a matrícula imobiliária, de ofício e a qualquer momento, sempre que a continuidade dos registros puder ocasionar danos de difícil reparação.
 
A jurisprudência tem aplicado esse entendimento de forma rigorosa no contexto dos atos notariais praticados fora da circunscrição territorial. O Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Ceará, ao julgar o recurso administrativo 8500029-21.2019.8.06.0106, reafirmou que a realização de atos em município diverso daquele para o qual foi outorgada a delegação constitui infração legal grave, passível de sanção disciplinar proporcional. No mesmo sentido, o TJ/SP, no julgamento da apelação cível 0004731-30.2015.8.26.0417, declarou a invalidade de escrituras lavradas por tabelião em município estranho à sua competência, destacando a violação ao art. 9º da lei 8.935/1994 e ao art. 215 do CC. Já o TJ/MG, ao analisar o processo 1.0000.00.164519-1/000(1), reconheceu a nulidade de ato de revogação de testamento praticado por tabelião fora da circunscrição, reforçando que a observância territorial é requisito essencial à validade do ato.
 
Esses precedentes convergem para uma diretriz clara: a extrapolação dos limites da delegação notarial compromete não apenas a legalidade, mas também a segurança jurídica e a confiança coletiva na fé pública, razão pela qual deve ser coibida de forma exemplar pelo Poder Judiciário.
 
A nulidade do título se distingue da nulidade do procedimento de registro porque, enquanto aquela impede nova apresentação ao registro, esta admite reapresentação. Por exemplo, quando se comprova a falsidade ideológica, o título não pode ser novamente apresentado. Já no caso de ausência de algum documento comprobatório, por exemplo, é possível apresentar novamente o documento faltante, permitindo o registro. A nulidade absoluta do registro pode ser declarada pela via judicial ou administrativa, ao passo que a nulidade do título exige reconhecimento judicial. Em ambas as hipóteses, a retirada dos efeitos depende de ato formal de cancelamento. Acerca da nulidade e a repercussão social, tem-se entendimento jurisprudencial do  cancelamento de todos os atos subsequentes ao registro anulado.
 
"Determinado judicialmente o cancelamento de um registro todos os demais que nele se fundam não mais subsistem no fólio real. Não há necessidade de que o magistrado determine expressamente o cancelamento de todas inscrições subsequentes ao registro cuja ordem de cancelamento teve objeto. É dizer, cancelado o registro rompido está o elo da corrente filiatória e os registros que nele se originaram tornam-se viciados, não podendo subsistir. O princípio do trato consecutivo permite concluir que por consequência do cancelamento de um ato precedente, os demais que foram praticados com suporte naquele, não mais subsistem" (1a VRPSP, Processo 587655/9/00, Juiz Oscar José Bittencourt Couto, j. 23/10/2000).
 
De qualquer forma a participação dos titulares que possam ter seus interesses prejudicados pelo ato de cancelamento é condição indispensável para que este se realize. Tal exigência decorre da Constituição, pois ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal. Essa participação não precisa ser ativa ou efetiva. Basta, por exemplo, que o réu seja citado para que a decisão judicial produza efeitos em sua esfera jurídica, ainda que a citação tenha ocorrido por edital e ele tenha permanecido revel. Por outro lado, a ausência de citação, em regra, impede que seus direitos sobre o bem sejam suprimidos. 
 
Nesse aspecto a repercussão do presente estudo se amplia, justamente porque esse efeito em cadeia de nulidade de títulos subsequentes, faz nascer a responsabilidade civil objeto de nulidade de atos notariais e registrais que é suportada pelo Estado, conforme entendimento do STF que decidiu no Tema 777, que o Estado responde, objetivamente, pelos danos causados por notários e registradores, conforme ementa:
 
O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa. STF. Plenário. RE 842846/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 27/2/2019 (repercussão geral) (Info 932).
 
Nessa linha, é plenamente defensável a tese de que o tabelião cuja serventia tenha sido prejudicada pelo deslocamento indevido de outro notário ao seu território possa demandar judicialmente a reparação de danos em face do Estado, com fundamento na responsabilidade objetiva reconhecida pelo STF no Tema 777 da repercussão geral. Isso porque, ao permitir ou não coibir a prática ilícita, o ente estatal compromete a arrecadação tributária municipal (ISSQN), fragiliza a sustentabilidade econômico-financeira da delegação e desestrutura a ordem territorial assegurada em lei, transferindo para o titular local o ônus de suportar prejuízos diretos - como a perda de atos que legitimamente lhe competiam - e indiretos, derivados da quebra da confiança social na fé pública notarial. Nessa hipótese, o Estado responde objetivamente pelos danos causados, cabendo o regresso contra o delegatário infrator.
 
Clique aqui para conferir a íntegra da coluna.
 
Johannes Miranda Meira: Possui graduação em Direito. Especialista em Direito Notarial e Registral. Especialista em Direito Civil e Empresarial. Mestre em Desenvolvimento Regional (2022) Mestre em Educação nas Ciencias pela UNIJUÌ - 2024. Doutorando em Desenvolvimento Regional (2025/2028). Tabelião de Notas e Registrador Civil em Naviraí - MS.
 
 
Fonte: Migalhas
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