Em julgamento de incidente de assunção de competência (IAC 20), a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou três teses que reconhecem direitos de militares transgênero, incluindo a possibilidade de uso do nome social e a proibição de desligamento ou reforma apenas com base na identidade de gênero ou no fato de o ingresso ter ocorrido em vaga destinada a sexo biológico distinto.
Por unanimidade, o colegiado estabeleceu os seguintes entendimentos no âmbito das Forças Armadas: 1) São devidos o uso do nome social e a atualização dos assentamentos funcionais e de todas as comunicações e dos atos administrativos para refletir a identidade de gênero do militar. 2) São vedadas a reforma ou qualquer forma de desligamento fundada exclusivamente no fato de o militar transgênero ter ingressado por vaga originalmente destinada ao sexo/gênero oposto. 3) A condição de transgênero ou a transição de gênero não configura, por si só, incapacidade ou doença para fins de serviço militar, sendo vedada a instauração de processo de reforma compulsória ou o licenciamento ex officio fundamentados exclusivamente na identidade de gênero do militar. Ação civil pública apontou práticas discriminatórias nas Forças Armadas Uma ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública da União relatou práticas discriminatórias contra servidores federais, especialmente militares das Forças Armadas, em razão de sua identidade de gênero. Segundo a ação, eles eram submetidos a sucessivas licenças médicas e à reforma compulsória, com base na categorização de "transexualismo" da CID-10 – classificação internacional de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), ao reformar a sentença, determinou a aceitação do nome social e o fim do encaminhamento automático à reforma. A União, contudo, recorreu ao STJ sob a alegação de que o reconhecimento da mudança de gênero criaria tratamento diferenciado sem previsão legal e que os eventuais afastamentos se deram a partir de condições físicas ou psicológicas verificadas em avaliações médicas. Princípios da dignidade e da isonomia respaldam o uso do nome social O relator do processo no STJ, ministro Teodoro Silva Santos, observou que o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ADI 4.275, reconheceu o direito fundamental dos transgêneros à alteração de prenome e de classificação de gênero no registro civil, independentemente de cirurgia de redesignação sexual, tratamentos hormonais ou laudos médicos, bastando a manifestação de vontade do indivíduo. Na mesma linha, à luz dos princípios da dignidade e da isonomia, o ministro citou o Decreto Federal 8.727/2016, que regulamenta o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero na administração pública federal, impondo a todas as autoridades administrativas o dever de adequar cadastros e documentos oficiais segundo a identidade de gênero declarada. "No contexto castrense, inexistem critérios ou justificativas válidas que permitam restringir o uso do nome ou do gênero adotado por militares transgênero; ao revés, impõe-se tratamento igualitário a essas pessoas em comparação com os demais militares do mesmo gênero identitário, eliminando distinções discriminatórias no ambiente funcional", destacou o ministro. OMS deixou de categorizar a transexualidade como transtorno mental Segundo o relator, é ilegal e contrária aos tratados internacionais a reforma compulsória de militares apenas por serem transgênero. Ele mencionou a Opinião Consultiva 24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que veda atos estatais que atentem contra a dignidade, a privacidade e a igualdade dos transgêneros. Do mesmo modo – acrescentou Teodoro Silva Santos –, os Princípios de Yogyakarta e sua atualização enfatizam a necessidade de inclusão e respeito às pessoas LGBT+ em todas as esferas, inclusive no serviço militar. Uma vez reconhecida oficialmente a identidade de gênero do militar – prosseguiu –, deve ser garantido seu direito de seguir na ativa, sendo vedada a transferência compulsória para a inatividade baseada apenas em incongruência de gênero. O ministro ressaltou que a identidade trans, por si só, não representa limitação técnica ou profissional. Assim, não havendo falta disciplinar ou incapacidade laboral comprovada, essa condição não pode ser usada como justificativa para retirar o militar de suas funções. Ao analisar a Lei 6.880/1980 (Estatuto dos Militares), o ministro verificou que a lista de doenças e condições que podem justificar a reforma por invalidez não inclui a transexualidade. Além disso, ele lembrou que a CID-11, versão mais recente da classificação de doenças da OMS, não categoriza mais a transexualidade como transtorno mental, passando a considerá-la sob o prisma da saúde sexual, o que confirma a despatologização da identidade transgênero. "Portanto, não há embasamento médico válido para afastar do serviço ativo um militar unicamente por ser transgênero, devendo prevalecer a análise individualizada da saúde do militar, sem qualquer preconceito institucional", concluiu o relator ao negar provimento ao recurso especial da União. Leia o acórdão no REsp 2.133.602. Fonte: STJ | ||
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